A saga do piano perdido: da rua para a casa de amigo de Raul Seixas

Instrumento roubado de hotel e largado na Orla foi resgatado por compositor de 'Capim Guiné'

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  • Fernanda Santana

Publicado em 8 de junho de 2018 às 20:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Almiro Lopes/CORREIO
Ruínas de hotel de onde piano foi roubado por Foto: Almiro Lopes/CORREIO

Olha ele aí! CORREIO encontrou piano em seu refúgio temporário, antes de ser devolvido (Foto: Almiro Lopes/CORREIO) Da janela do primeiro andar do prédio, um morador entreolha para a vaga de número 21 do condomínio. O porteiro, Orlando, descola o saco preto do que parece entulho guardado sob a laje do estacionamento. Revela-se o piano Fritz Dobbert abandonado na Orla do Jardim de Alah, na última quarta-feira (8), e perdido na própria imponência desajeitada.

Orlando se abaixa e arrisca notas aleatórias no instrumento. O piano responde: imediato e sonoro. Seu salvador, Wilson Aragão, músico e compositor do clássico 'Capim Guiné' com o amigo Raul Seixas, relembra o dia do encontro. "Senti uma dor tão grande ao ver ele ali, jogado na rua", disse ele ao CORREIO, por telefone.

Quis o destino levar Aragão para a Orla naquela manhã, entre 8h e 9h. Ele próprio relata a história da descoberta do piano e põe fim ao mistério do Fritz Dobbert perdido. Ou melhor, roubado do Hotel Atlântico, fechado há dois anos, e largado no asfalto ao lado de um carrinho de supermercado. Cena surrealista até para os olhos de artista de Aragão.“Passei pelo piano, mas nem sabia o que era. Quer dizer, achei que fosse coisa de marido e mulher mesmo, alguma briga dessas de jogar fora a coisa de outro. Depois, vi que era um piano mesmo. Não acreditei. Liguei para Marcos Clemente [outro músico] e ele falou: ‘a gente precisa fazer algo, bota ele aí na sua'”, lembra.Decidiu ligar também para a esposa, Mirian Aragão, 62. Ali mesmo, de frente ao piano descoberto da lona preta, a artesã conta o desespero do marido. “Ele ligou e me disse: Teco, tem um piano que aqui está prestes a ser jogado no lixo. Mas a gente tem que dar um jeito nisso aí. Eu respondi que sim, tínhamos que fazer alguma coisa mesmo”.

O músico até voltou para casa, bem próxima do ponto exato do abandono, para planejar o destino do instrumento. No meio tempo, questão de minutos, recebeu a ligação de um amigo: o piano estava prestes a ser descartado (pela segunda vez) como lixo, pela Limpurb.

Conversou com os agentes e ficou decidido: um caminhão baú iria naquele mesmo dia retirar o piano da avenida Octávio Mangabeira, a Orla. Instrumento abandonado na Orla, antes de ser levado em caminhão (Foto: Adriana Silva/Foto do Leitor) Clemente, “amigo, grande pianista”, pagou algo em torno de R$ 200 para quatro ajudantes realizarem o transporte.

Serviço feito, chegou o novo morador do condomínio de prédios. À noite, os dois amigos já estavam na 9ª Delegacia (DT/Boca do Rio) para esclarecer o assunto. Mas, aí, nem os policiais pareceram acreditar na história – que parece mesmo inacreditável. Aragão é quem afirma:“Eles disseram: 'só com o delegado, na segunda-feira'. E a gente: 'Mas será que você não poderia anotar alguma coisa?'. E nada. Aí viemos embora. Quando era dia, soube que já estava na internet, mas não tive medo nenhum não, está tudo às claras”.O destino Somente nesta sexta (8), os policiais foram ao condomínio checar o paradeiro do piano. A essa altura, Fausto Mendes Batista, 61, já havia reivindicado a paternidade do piano a Carlos Roberto Jesuíno Santos, empresário falecido, ex-proprietário do Hotel Atlântico e pai de sua esposa.

A invasão ao hotel, inclusive, foi descoberta por ele, que vai à antiga hospedaria três vezes na semana. Mas, quando a polícia finalmente apareceu na portaria do edifício, e Fausto pedia a devolução da herança familiar, Aragão já estava longe: havia viajado para Santo Amaro, no Recôncavo, para planejar a agenda do São João.

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Ainda assim, já está determinado o destino do piano. Marcos e Aragão queriam restaurar as três pernas quebradas, ajeitar peças fora do lugar. Fausto, no entanto, decidiu: o próximo lar do instrumento será mais um hotel abandonado, o Hotel Itapoã, também de propriedade da família de Jesuíno Santos. A curta viagem de Armação até Itapuã deve ocorrer na próxima segunda-feira (11). 

O delegado ACM Santos, responsável pela 9ª Delegacia, informou o prazo ao CORREIO. “Mas não fazemos questão de correria, não. Nós estamos acompanhando a situação e está claro que os dois [Aragão e Marcos] agiram de boa fé. Nem serão indiciados por nada”.

A notícia do futuro do piano é recebida com tristeza por quem o salvou e, também, por seus novos vizinhos/cuidadores. O porteiro Orlando Gomes, 28 dos 48 anos na função, lamenta:“Poxa, abandonar de novo? É isso mesmo? Por que não vender por um preço negociável? Agora é que vão roubar mesmo”, prevê.

Nunca tocara em um piano até esta sexta (8). E, agora, após a chegada de Fritz, não entende o porquê de logo um hotel abandonado ser a próxima casa do piano.“Dá até vontade de aprender, né?”, pergunta, entre a admiração e a curiosidade, o cantor de músicas de louvor na igreja Batista que frequenta, em Tancredo Neves.Seria o silêncio o fardo daquelas 88 teclas? Wilson Aragão não sabe responder, mas acrescenta: “Na minha opinião, colocaria na mão da justiça, para ver essa situação direitinho”. A esposa, Mirian, é mais enfática: “Isso é loucura”.

O amigo, Marcos, também se revolta: “Tanta euforia em cima do piano, para não recuperar”. Todo instrumento, ele acrescenta, “precisa ter vida, precisa ser”. Por isso mesmo, para devolver, de alguma forma, a vida ao Fritz, os dois já compõem uma música para narrar a saga do piano. “Virou uma novela, né? Que a gente espera que tenha uma final feliz. Mas, até agora, é tudo muito triste”.

O músico compartilhou um trecho da canção com a matéria: "Um caso inusitado como esse só acontece uma vezem cada dez mil anos. Espingarda de Lampião soltando fumaça pelo cano. Nunca vi tanta peleja por conta de um piano". Veja:

‘Sacizeiros artistas’ Dois “sacizeiros” empurram, às duas da manhã de quarta-feira, um carro de compras. Dentro dele, um piano. Um taxista vê a cena, algo atípico em toda a sua vida, e a relata para Aragão pela manhã. “Ele me disse que os dois, mesmo bem fortes, não aguentaram o peso, e largaram ali mesmo, no meio da rua”, conta Aragão. Também pudera: o piano pesa, no mínimo, 300 quilos, calcula o músico. Tanto assim que, para ser retirado da rua, precisou do esforço dos quatro ajudantes.

Mas, quem são os misteriosos ladrões? “Ah, o hotel está lá, abandonado, deve ter sido um sacizeiro [usuário de droga] qualquer que nada por ali”, opina o delegado ACM. “Quer dizer, um sacizeiro artista, né?”, brinca ele, em seguida. Até o momento, nenhum suspeito foi encontrado pela polícia, ainda conforme o delegado. 

O piano perdido estava no Hotel Atlântico desde o início da década de 80, quando foi inaugurado. Nos primeiros anos, era utilizado para eventos de música ao vivo para os hóspedes, no saguão do café da manhã. Pouco depois, sem explicar a razão, Fausto diz que os eventos pararam de acontecer. No entanto, ele diz: “Tem muito a agregar no valor do hotel”. Agora, a preocupação é com a resolução do caso. A esposa de Aragão, Mirian, ironiza: “É como diz o ditado: feio é roubar e não conseguir carregar”. É como diz, também, a música Capim Guiné:“Agora veja, cumpadi, a safadeza”.*Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier e do editor João Gabriel Galdea.