Abrindo as portas da música: taxista se torna atração tocando dois molhos de chaves

O taxista Rui Silva Matos, 64 anos, se alterna entre as corridas de táxi e o seu talento musical

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 29 de março de 2017 às 06:20

- Atualizado há um ano

Toquinho olha para o lado e troca uma ideia com Vinícius. São os últimos preparativos para um clássico: Garota de Ipanema. Cada um abraça um violão. Tudo pronto. Eis que, de surpresa, sobe ao palco Rui Matos. Cabe a ele a percussão. Agora, Vinícius, Toquinho e Rui formam um trio. Aquela seria uma noite linda. 

Mas o encontro nunca existiu. E nem vai existir. É tudo obra da imaginação do taxista Rui Silva Matos, 64 anos. É desse jeito que ele faz seus ensaios solitários, entre uma corrida e outra. Na quarta-feira passada, depois de estacionar sua Chevrolet Spin próximo ao Largo da Dinha, no Rio Vermelho, meteu o MP3 para dentro do som e se viu entre os dois monstros da bossa nova.Rui das Chaves exibe seu "instrumento musical": 26 chaves divididas em dois molhos (Foto: Mauro Akin Nassor/ CORREIO)Nas mãos, não havia um pandeiro ou surdo, mas 26 chaves divididas em dois molhos e quatro anéis. O suficiente. O primeiro ‘percuchavista’ do Brasil, como ele se autodenomina, mostra que, na música, não há portas fechadas. Para Rui, que além de taxista é petroquímico aposentado, nenhuma tranca é mais forte que a criatividade. A chave para tudo está na improvisação.Onde quer que chegue, as pessoas recebem Rui de portas abertas. Faz participações em diversos bares e casas de show. Mas, como essa chave virou em sua vida? Onde e como ele começou a decifrar os segredos da penca de metais? “Um colega de fábrica do Polo (Petroquímico) tinha a mania de ficar sacudindo as chaves para tudo. Eu peguei a mania dele. Essa coisa foi tomando uma dimensão que comecei a ter contato com os músicos. E fui evoluindo.”E assim abriram-se as portas da Varanda do Sesi, onde faz participações frequentes com grupos de samba. É também um dos mais assíduos da roda de choro da Casa da Mãe, no Rio Vermelho, todas as quartas-feiras. Até mesmo no jazz da Jam no MAM, aos sábados, Rui se arrisca. “Chego às vezes um pouco atrasado, por causa da vida aqui do táxi. Mas basta eu chegar para o pessoal me chamar”, explica.CorridasQuantas vezes Rui deixou as apresentações para fazer uma corrida no seu táxi? “Ele chega e diz: ‘olha, vou ali rapidinho levar um cliente no aeroporto’. E volta normalmente para a roda”, revela a comerciante Stella Maris, dona da Casa da Mãe.Impossível descrever os movimentos dos dedos das mãos de Rui. “A gente não entende direito o que ele faz, principalmente com a mão esquerda. Ele desenvolveu algo muito peculiar”, afirma Elisa Goritzki, flautista das noites de choro na Casa da Mãe. O fato é que, mesmo em uma roda com vários instrumentos, o som das chaves está sempre presente. “As chaves de Rui têm um som cortante, como se fosse uma navalha”, afirma o músico Ivan Wuol, coordenador artístico da Jam no MAM.Rui não pertence a bandas. Não faz ensaios. Não tem qualquer formação musical. Contraria, inclusive, seu DNA. “Na minha família só tem um primo de terceiro grau que é músico. É o único”. Nem ele mesmo explica sua virtuosidade musical. “Eu ouço um som e aquilo sai pelas minhas mãos.” Quem sabe um especialista explique?“Rui toca de forma improvisada um instrumento improvisado. Rui tem na sua essência as idiossincrasias do músico brasileiro. É ingênuo”, afirma o músico Ivan Wuol. “Rui não segue um script. Rui das Chaves toca Rui das Chaves. A gente é que acaba acompanhando ele”, completa Wuol.CaronaPegando carona no táxi de Rui, descobrimos que, além de qualquer coisa, as suas chaves abriram o coração dele para muitas amizades. Rui é festejado e abraçado onde pisa os pés. As crianças adoram o som que ele faz. “Os adultos, às vezes, nem se interessam. Mas as crianças ficam logo curiosas”, disse, antes de abrir uma caixa de óculos de onde tira seu instrumento musical.Jazz, samba, choro, bossa nova, forró, salsa... Rui já tocou de tudo. “Às vezes eu arrisco até música clássica.” Apesar disso, quando se trata de escutar música, faz restrições. Para escutar no carro ou em casa, tem o ouvido fechado a sete chaves para determinados sons. “Me recuso a ouvir música que não seja de qualidade”, disse, antes de ligar o som com Toquinho e Vinícius tocando Garota de Ipanema."Tom Jobim, Baden Powel, Vinícius, Toquinho, Caetano, Gil, João Gilberto. Só ouço coisa de alto nível”, avisa. Provavelmente nunca vai tocar com os que estão vivos entre essas lendas. A não ser, claro, nos seus ensaios imaginários dentro do táxi. Mas, quem sabe um dia não surge uma chance. “Caetano e Gil estão aí. Toquinho também. Quem sabe?” A chave, Rui, é sonhar alto.