Achei que meu cachorro fosse eterno

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  • Kátia Borges

Publicado em 10 de novembro de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

Em 16 anos, uma criança se torna apenas um adolescente. No mesmo período, um cão envelhece o suficiente para virar um espanto. Dizem que, por viverem mais intensamente que os seres humanos, os caninos morrem bem mais cedo. Cada ano equivale a sete. Gosto de me enganar que seja porque dispensam algumas lições, porque saltam etapas de amadurecimento, porque já nascem sabendo amar. Ao contrário da maioria de nós.

Sempre que era possível, andávamos juntos pelas ruas do bairro, meu cão cego e eu, um conduzindo o outro no piso irregular do passeio. Como sou absurdamente distraída, desligava o celular, esquecia o drama nosso de cada dia e tentava praticar alguma técnica budista para estar completamente presente, a mão na guia. Mas nem toda concentração do mundo nos livrava de alguns sustos no percurso.

“Seu cão é violento?”, por exemplo, virou a senha para conhecer vizinhos de todo canto, tutores de animais como eu. Após a pergunta, geralmente engatávamos uma conversa sobre a velhice dos cães. Incrível como a maioria já perdeu algum velhinho. Os mais inconvenientes dizem para ir se acostumando com a ausência que se aproxima. Os mais sensíveis lembram histórias incríveis de cachorros que viveram quase um século com saúde. Poodles costumam ser resistentes, alguns alcançam até 20 anos.

Incontáveis vezes este ano estive com o meu cachorro em consultas e em unidades de terapia intensiva numa clínica perto de casa. Todos por lá conhecem Billy, das recepcionistas e enfermeiros que trabalham nos vários turnos aos médicos veterinários especializados em diversos ramos como cardiologia, ortopedia e oftalmologia. Nessas idas e vindas, descobri que existe um hemocentro animal e que há um laboratório de manipulação que transforma intragáveis pílulas em biscoitos caninos.  

Numa dessas internações, a mais longa de todas, a médica ligou avisando que ele havia piorado bastante de repente e que parecia, de fato, sobrar pouco tempo. Corri para a clínica, atônita. Achei que meu cachorro fosse eterno. Entre lágrimas, entreguei sua alma a Deus, pedi a São Francisco que cuidasse dele no céu dos cachorros, e até comuniquei o fato a alguns amigos. Questão de horas, talvez. Em casa, tudo gira de algum modo em torno dele, desde a organização dos móveis à disposição dos potes de alimentos.

Confesso que tento exercitar o desapego, e que cuidar dele dá um trabalho e um gasto gigantescos, mas pedi que buscasse forças para ficar mais um pouco. Egoísmo meu, talvez. Ninguém é perfeito. No dia seguinte, olha o bom velhinho melhorando. Queda de potássio no sangue, explica a médica. E seria extenuante listar aqui os problemas de saúde e os medicamentos. Mas é fato que Billy voltou para casa conosco, quando parecia impossível. Pelo retrovisor, observamos enquanto dorme no banco traseiro.

Por absoluta sincronicidade, enquanto vamos para casa com nossa pequena família outra vez completa, toca uma música no rádio – e é a mesma que costumo cantar para ele: “é que a gente quer crescer e, quando cresce, quer voltar do início, porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partido”. As caminhadas são mais curtas agora. As consultas são mais frequentes ainda e, preso com imãs de propaganda, há um roteiro de medicamentos com horários rígidos pregado na porta da geladeira. Apesar das dificuldades, Billy permanece conosco enquanto escrevo: amoroso, esperto e forte. Um guerreiro como poucos. E nós seguimos, sem pensar em até quando.