​​​​​​​'Adoraria que a sociedade não rotulasse crianças', diz psicólogo

Em entrevista, Gilmaro Nogueira fala sobre rótulo de "criança viada" e necessidade de estabelecer diálogo sem preconceitos

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  • Da Redação

Publicado em 14 de maio de 2018 às 06:20

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arte: Quintino Andrade/ CORREIO

Lembra daquela criança que era apontada pela turma inteira na escola por ter um "jeito diferente"? E daquela que era alvo de comentários de toda família às escondidas nas festas? Se à sua lembrança veio um menino, talvez ele tivesse uma voz fina, fosse sensível ou gostasse de brincar de bonecas ao lado das irmãs e primas. Se veio uma menina, talvez ela fosse apontada por estar sempre no grupo dos meninos, preferir bola e lutas, além de shorts a vestidos.

Seja através de olhares ou mesmo de palavras, é assim que desde muito pequenas e sem entender muito o porquê, crianças aprendem que algumas brincadeiras e comportamentos não são para elas. Nessa entrevista ao CORREIO, o psicólogo clínico e pesquisador em Cultura e Sexualidade, Gilmaro Nogueira, 43 anos, fala sobre o rótulo de "criança viada" e a necessidade de estabelecer diálogo sem preconceitos em casa e nas escolas.

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O desejo de brincar de boneca ou de pintar as unhas, manifestado por um menino, ou de não querer vestir vestidos e jogar bola, expressado por uma menina, já são associados de cara ao fato de a criança ser homossexual. Em que medida essas coisas podem estar associadas e quando é que o desejo/atração sexual se manifestam?

As pessoas associam qualquer comportamento feminino de homens a homossexualidade. Se uma criança (menino) brincar de boneca, ele coloca em dúvida a garantia de heterossexualidade. A criança sequer sabe o que é considerado do feminino ou do masculino, e é somente através de um processo de aprendizagem que ela vai internalizar essas proibições e regras. Os estudos de Freud mostram que desde muito cedo a criança tem desejo sexual, e isso chocou a sociedade do século XIX,  mas esse desejo não tem forma de heterossexualidade ou homossexualidade.

Há uma idade ideal para conversar com as crianças sobre essas vontades? Qual o melhor modo de abordar isso? Pergunto porque há quem acredite que só o fato de estarmos pautando esse assunto, conversando sobre ele, estamos incentivando determinados comportamentos...

As crianças vão interrogar os adultos sobre sexualidade. Esses devem ter um diálogo de acordo com o entendimento da criança. Não pode ser uma abordagem aterrorizante, pois pode provocar problemas no desenvolvimento psicossexual. Então, se alguém diz que sexo é sujo ou pecado, isso irá influenciar a vida sexual dessa criança no futuro. Se por acaso essa criança manifesta um interesse afetivo por outra do mesmo sexo, isso não pode ser tomado como um problema. O problema consiste em não dialogar sobre sexualidade e a criança aprender conceitos distorcidos. Ensinar às crianças o que um adulto não pode fazer com seu corpo, por exemplo, é falar de sexualidade. Há ainda um equívoco de acreditar que podemos impedir o desejo sexual de alguém pelo mesmo sexo, ao evitarmos que as crianças saibam que existem pessoas que gostam de outras do mesmo sexo.

E sobre essa crença de que há um "incentivo", uma "apologia" à sexualização....

Obviamente, quando estou falando de uma criança manifestar interesse por outra, não estou dizendo que devemos sexualizar as crianças, erotizá-las, mas brincadeiras sexuais ocorrem cada vez mais cedo. Não acho que exista apologia a homossexualidade, mas um pânico social da homossexualidade, isto é, qualquer movimento que seja interpretado como desvio de uma heterossexualidade é visto com terror. As crianças desde cedo vêem beijo heterossexual nas novelas, nem por isso se fala em apologia à heterossexualidade. Há ainda um equívoco de acreditar que podemos impedir o desejo sexual de alguém pelo mesmo sexo, ao evitarmos que as crianças saibam que existem pessoas que gostam de outras do mesmo sexo. Essa abordagem não impede o desejo, mas pode fazer com que essa criança seja um adulto que não se aceite, tenha baixa autoestima, se deprecie e  tenha mal-estar relacionado à sua sexualidade.

Como desconstruir esses padrões calcados na heterossexualidade, que causam muito sofrimento à criança quando elas nem mesmo têm dimensão do seu lugar no mundo?

A criança apreende que não pode ser homossexual através de discursos e de outras violências, na grande maioria das vezes físicas e verbais. É preciso que as pessoas, desde cedo aprendam que há milhões de formas de existir no mundo, sendo heterossexual, homossexual, negro, branco... As discussões sobre gênero tem evidenciado que discutir com crianças, que existe uma diversidade de pessoas, é benéfico a sociedade como um todo - evitaríamos assim, diversos preconceitos, violências etc. Alguns pais desejam que a gente diga se o filho é gay ou não. Não temos condições de dizer isso, pois não é um diagnósticoVocê mantem um grupo de apoio a jovens LGBT. Como é que eles chegam até você? Quais as principais questões e como eles costumam se posicionar diante delas?

Eu supervisiono um estágio que acolhe pessoas LGBT quando demandam acompanhamento psicológico. Chegam através de amigos, grupos ou até encaminhados por alguma instituição. Os problemas mais evidenciados são: conflitos e rejeição familiar, expulsão do lar (não temos onde abrigar em Salvador), baixo autoestima, depressão... Há exemplos que vão de maus-tratos à cárcere privado.  

Deve chegar a você filhos cujos pais estão mais inseguros que eles próprios quanto à sexualidade dessas crianças e adolescentes - por mais que essa seja uma fase de muita confusão. Como é que você enquanto psicólogo enfrenta esse descompasso?

Alguns pais desejam que a gente diga se o filho é gay ou não. Não temos condições de dizer isso, pois não é um diagnóstico, sobretudo de uma criança que às vezes apenas gosta de brincar de boneca, ou o contrário, não se pode pensar que a virilidade e masculinidade é uma exclusividade heterossexual, pois muitos gays são másculos e muitos valorizam essa virilidade como padrão de conduta. Então, o fato de uma criança, menino, só jogar futebol não significa que será heterossexual. 

Nossa metodologia é de acolher essa criança, mostrar aos pais a importância do afeto e da proteção familiar.  As vezes é preciso dizer que nosso trabalho não é impedir uma homossexualidade ou garantir uma heterossexualidade, mas que essas escolhas pertencem ao sujeito, num processo de desenvolvimento que não precisa ser antecipado.  (Arte: Quintino Andrade/ CORREIO) E quando a homossexualidade é descoberta pelo adolescente? Quando, de fato, há uma atração pelo mesmo sexo manifestada, ou seja, já há uma verbalização identificatória com alguma orientação sexual ou identidade de gênero diferente da esperada, o trabalho é ajudar os pais a fazerem o luto pelo filho/a idealizado. Às vezes, os pais têm conceitos equivocados, como por exemplo: "Meu filho é gay porque tem muita influência da mãe - na maioria das vezes a culpa recai sobre a mãe, mas aíi precisamos discutir que esses conceitos são equivocados, que a mãe pode ser "super-protetora" e o filho ser heterossexual, por exemplo. O pai por exemplo, seria heterossexual porque a mãe não super-protegeu ele? São concepções machistas que culpabilizam a mulher/mãe. Quantas pessoas têm apenas a mãe como cuidadora e não é gay?  E na grande maioria dos casos de jovens gays, não ocorre essa super proteção, mas o contrário.A escola tem sido um local de reprodução dessa violência, não só porque as vezes os professores permitem piadas e injúrias, mas também por silenciar e não discutir sexualidade e gênero como parte da diversidade humana.

Quais os ambientes mais hostis à "criança viada"?  A família tem sido um espaço de violência, o que dificulta mais a vida da criança, pois em muitas situações, você pode sofrer violência fora, mas ter acolhimento em casa, como em casos de racismo, por exemplo. É muito comum a criança ser chamada de viadinho, bichinha e até sofrer violência física em casa.

A escola tem sido um local de reprodução dessa violência, não só porque as vezes os professores permitem piadas e injúrias, mas também por silenciar e não discutir sexualidade e gênero como parte da diversidade humana. Tem escolas que os professores evitam falar de sexualidade, mas as/os alunas/os demandam e assim o debate ocorre. Muita gente conservadora acredita que vamos nas escolas falar para as crianças serem gays, que não devem se apresentar como meninos ou meninas - que a discussão vai acabar com a família e não é isso.

De fato, é preciso dizer que ser homossexual não é um problema, ser transexual não é  um problema, o problema é nosso desrespeito e preconceito. Nós só queremos que todos os sujeitos, crianças ou adultos, não tenham que sofrer violência por não estarem no padrão de sexualidade e gênero que a sociedade exige.

Acho que a escola é central nesse processo, não é? De que modo ela pode ajudar ou atrapalhar nessa liberdade de ser quem se é? Não discutir o tema, já é um problema, pois é na escola que devemos aprender concepções científicas sobre nós e o mundo. Não discutir na escola, não evita desejo, ou que as crianças falem sobre o tema. Pode atrapalhar ainda ao permitir situações de humilhação contra sujeitos diversos, desde a criança que não se encaixa nas normas de gênero, chamada de viada, como também a outras: negras, gordas... 

Quando falamos de criança viada, geralmente vem à mente a imagem de meninos afeminados. Mas e as meninas? Elas sofrem duplamente por essa "invisibilização"? Ser encaixado na infância dentro de rótulos odiados é o pior que pode existir, porque a criança não tem ferramentas ainda para lidar com esse preconceito. Acho que se permite mais às crianças-meninas até certa idade uma certa masculinização, no entanto, temos observado que após uma certa idade as violências contra meninas se tornam maiores que até mesmo do que contra os meninos. Pois alguns pais mandam alguém estuprar suas filhas, para mostrar o que é um homem de verdade que a faça sentir prazer - o estupro corretivo. Isso é uma das piores violências, além de perceber que as meninas têm sido mais agredidas em casa, pelos pais - uma violência que também é de gênero. O medo que a criança possa ser viada, transgredir as normas de gênero, mostra que é um tabu. Não deve ser um termo para identificarmos crianças, rotulá-las, pois dificilmente estão preparadas para lidar com a injúria

Falando nessas camadas de sofrimento, vi um texto seu para o Papo de Homem em que falava que "não é fácil ser jovem, sozinho, às vezes, pobre, e se descobrir na contramão da cultura dominante de sua sociedade". A condição social desfavorecida da criança/adolescente lhe imputa maiores desafios?

Ser pobre, negro e gay afeminado não é fácil. São muitos desafios, porque essas três dimensões: classe, raça e sexualidade/gênero são importantes em nossa vida. Tenho percebido que muitas vezes algumas violências se sobrepõem sobre outras, como a questão da sexualidade, pois em questões de raça e classe pode haver mais alianças com os pais, uma maior rede de apoio, mas ser gay ou transexual na grande maioria das vezes é lidar com o abandono familiar e social. Mas não quantifico o sofrimento, ou seja, mesmo gays brancos e ricos sofrem, porque essa percepção de dor é subjetiva e individual.

Hoje, o termo "criança viada" é reapropriado no sentido de elevar a auto-estima de pessoas (gays ou não) que foram julgadas de forma tão ofensiva durante a infância pelo "seu jeito". Ao mesmo tempo, é um termo alvo de certa recusa - as pessoas não dizem expressamente que aquela criança é viada, mas dão todos os indícios de que as vêem assim, muitas vezes usando termos ainda mais pejorativos. Como você enxerga essa tensão em torno da expressão "criança viada"? É mais uma prova do tabu?

É um termo que os adultos devem usar para falar de si: "fui uma criança viada!". Tirar o potencial negativo do termo, isto é, se antes esse termo diminuía a existência desse sujeito, ele hoje pode reapropriar o termo e transformar em algo empoderador.  O medo que a criança possa ser viada, transgredir as normas de gênero, mostra que é um tabu. Não deve ser um termo para identificarmos crianças, rotulá-las, pois dificilmente estão preparadas para lidar com a injúria. Talvez um pai ou mãe possa dizer: "Filho, ser viado não é um problema!", mas ainda assim precisamos coibir as violências verbais e não se faz isso apenas ajudando o sujeito a ter autoestima, mas fazendo que todos sejam estimados e respeitados.

Agora deixo contigo caso queira fazer algum comentário a mais! Acho que o termo criança viada é empoderador, mas adoraria que a sociedade não rotulasse crianças, nem usasse as identidades de determinados sujeitos para injuriá-las ou diminuí-las.