Afoxé da renovação: 70 anos de Filhos de Gandhy

Diferentes gerações se encontram no bloco e levam adiante missão de paz na avenida

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  • Vanessa Brunt

Publicado em 6 de março de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Árisson Marinho

Ajayô! Quem lê ou ouve a expressão, pode acabar lembrando do cantor Carlinhos Brown. Mas para quem identifica o grito vindo do trio dos Filhos de Gandhy – que comemorou 70 anos no último dia de Carnaval, indo no contrafluxo da Rua Chile ao Campo Grande –, a expressão africana  significa a saudação a Oxalá. E  o intuito de pregar, em meio à festança, os princípios de não violência e paz do ativista indiano Mahatma Gandhi, mesclados à devoção aos orixás.

Apesar das bases repletas de reflexões, para muitos dos que acompanham de fora, o Gandhy representa  “mais uma forma de pegação carnavalesca”, já que o colar da vestimenta tradicional é, atualmente, muito utilizado para ser trocado por beijos na folia. Era assim que pensava Vagner Campos, 33, que foi surpreendido ao perceber que os homens estão ali para muito além dos colares.

Antes deste ano, sem nunca ter saído no bloco que permite apenas o sexo masculino, Vagner tinha uma imagem mais preconceituosa. "Sempre tive essa ideia, de que quem saía nos Filhos de Gandhy era pra pegar gente, era essa coisa mais esculhambada, bem na linha carnavalesca em geral", conta. Mas, foi só sair pela primeira vez atrás dos Filhos, que tudo mudou. "Vi que é uma questão de energia e de pertencimento. Todos aqui ‘se limpam’ das coisas negativas e se sentem parte de um todo, sentem que estão ali pelo outro, que o outro está ali por ele. É emocionante. Quem vem, sente essa questão da energia. Foi aqui que me reconectei com a minha terra", conclui. Os irmãos Marcio e Ricardo Santos saem de Gandhy para atender o desejo da mãe Miralva: "Gandhy é paz e amor" (Foto: Vanessa Brunt) Ali, logo ao lado de Vagner na concentração, estava uma representação clara de que o bloco vai muito além da questão carnal. A família Santos festejava o trio antes mesmo dele sair. Dona Miralva, 66, é a mãe dos dois ‘meninos’, Marcio Santos, 39, e Ricardo Santos, 41, que já saem há 16 anos no bloco. O motivo? Realizar o sonho dela. 

“Desde pequena ela sonhava em acompanhar o Gandhy e, desde a nossa infância, ela nos incentivou a ir. Ela sempre nos explicou que o bloco é sobre amor e paz”, contaram os rapazes, que permaneceram fiéis apesar de algumas decepções com a mudança de cores da fantasia. “Está com muitos tons amarelos agora e nós entendemos que quer dizer a luz, a bondade, a sabedoria. Mas não deveria ser a cor predominante, Gandhy é pra sempre azul e branco”, opinaram.

MULHERES APAIXONADAS  Junto com Dona Miralva, do outro lado da corda, acompanhando tudo da pipoca, estava Beatriz Santos, 19, filha mais nova da família e também encantada pela história do trio. “É uma questão histórica tão forte e, acima até disso, é um momento de tirar mau-olhado para começar o ano de forma mais limpa. O bloco é sempre iniciado com uma saudação, uma oferenda para abrir boas portas para todos”, disse a moça, que ainda espera sair no bloco Filhas de Gandhy. “Quando estiver maior, vou estar lá”, afirma, ainda lembrando do momento que mais gosta ao acompanhar o trio: “Quando soltam as pombas da paz é a coisa mais linda do mundo”, relembra. 

Pouco depois da frase dita por Beatriz, o bloco deu a largada e os milhos brancos passaram a ser lançados lá de cima do trio. “Viu? É pra tirar energia ruim. Deixa cair em você! Faz um bem enorme”, exclamava a jovem.

Do lado de fora das cordas, também fechando os olhos para ‘o banho de milho’, estava Mauro Moreira, 49, que há 10 anos curte os Filhos de Gandhy. Há um ano, ele começou a namorar Cátia Silva, 45, mas nada de abandonar a paixão por conta disso. Ele trouxe a namorada para curtir o bloco e disse ser tranquilo para os casais: "Vamos juntos e tá tudo certo. Ele é apaixonado. Não poderia deixar de sair junto", afirmou a própria namorada. Raimundo Dias e Fátima Moura: casal unido pelo amor ao Gandhy. Ele vai dentro e ela fora (Foto: Vanessa Brunt) Fortalecendo o time dos casais, também estava Raimundo Dias, 69, e Fátima Moura, 63, que estão juntos há 29 anos e, há 33, ele segue os Filhos de Gandhy. O relacionamento só fortaleceu a tradição. Agora, até ela vem com o traje do bloco. "Mulher não entra, mas eu vou do ladinho da corda e ele vai comigo. O bloco é tranquilo, então dá pra ir juntinho sem confusão nenhuma", conta Fátima.

E em meio às famílias, casais e outras mulheres, Helen Cristiane Nunes, 41, veio prestigiar o afoxé para enviar os momentos para o cunhado, André Nunes, 30, que está morando na Austrália e saía no bloco em todos os anos. "A mãe dele colocou a roupa toda preparada em cima da mesa, pra que a energia não deixe de ser enviada pra ele. Os Filhos de Gandhy são muito sobre esse momento de fé e ele está muito triste por não ter vindo, então estamos fazendo isso por ele", pontuou.

Mas não só de mulheres que marcam presença é que é feita a lista das que enxergam beleza na fé do Gandhy. Em meio aos outros homens, estava Davi Andrade, 28, casado há 8 anos. Desde o primeiro ano de casamento, ele passou a acompanhar os Filhos de Gandhy sozinho. "A minha esposa fica tranquila. Sabe que, para mim, os colares representam as bênçãos que peço na vida. Não tem a ver com beijos. E é assim pra muitos de nós. Vários amigos casados vêm e respeitam suas esposas. É apenas uma questão de energia pra gente – e, de quebra, fazemos novas boas amizades", afirma. 

INSPIRAÇÃO PARA OS PEQUENOS  Pedro Henrique com o pai, Pedro Silva, e a mãe, Jaqueline Pereira: mesmo sem poder sair no bloco ele faz questão de se vestir de Gandhy (Foto: Vanessa Brunt) Fora das cordas, as fantasias não apareciam só nos corpos femininos. ‘Pequenos homens’ também coloriam a avenida de branco, azul e, agora, amarelo. Pedro Henrique, de 6 anos, por exemplo, pedia desde os 4 aninhos para sair no Carnaval com os Filhos de Gandhy. O pai, Pedro Silva, 39, sempre saiu nas Muquiranas com todos os homens da família. Mas o garoto insistia para a mãe, Jaqueline Pereira, 38, que queria ir no bloco onde "falavam de amor e paz", como afirma a própria criança. 

"Ele ainda não pode entrar, porque não é permitido criança, mas ele pode acompanhar com os pais e nós viemos realizar esse sonho dele, que é muito bonito. Filhos de Gandhy fazem parte da nossa cultura. Somos moradores do Pelourinho e sabemos como é algo que foca na limpeza de energias com essa conexão voltada aos orixás", conta Jaqueline.

O pequeno Léo Henrique, de 5 anos, também estava presente na comemoração de 70 anos do bloco, assim como várias crianças que vestiam o traje tradicional. Ele veio acompanhado dos pais, Edilene Carvalho, 36, e Alex Barboza, 38 "É um momento que ensina a respeitar a todos, a pregar a paz independente de cores ou de religiões. É muito bonito de observar a parceria e energia entre todos no momento. É isso o que falta no mundo e trouxemos ele para ratificar essas lições desde já", explicou Alex. Edilene, que concorda com o marido, acompanha tudo do outro lado da corda com muito gosto e ratifica: "Um orgulho trazer o meu filho para esse lado diferente do Carnaval, que não tem brigas e nem ódio".

Assim como os casais, o soteropolitano Edberto Esquivel, 58, acompanha os Filhos de Gandhy há 25 anos e, pela primeira vez, trouxe o filho Mateus Esquivel, 25. "É o batismo dele hoje", disse o pai, afirmando que observa os amigos levando os filhos e ampliando o bloco para novas gerações. Para Mateus, é uma honra. "Quem vê essa roupa já sabe que é símbolo de paz. É óbvio que ainda tem gente que vem pensando só em trocar colar e beijar na boca, mas pra maioria é muito além disso", conta, ainda enaltecendo as músicas do bloco. "São sons do Candomblé, representam orixás. Isso nos ajuda a sentir que estamos saindo purificados depois. É o que meu pai diz", exclama o jovem na expectativa.

Ronaldo Oliveira, 56, que também aguardava a saída comemorativa, diz que percebe o quanto os amigos seguem a ideia de transmitir colares para gerações. “Meus amigos passam colares para os filhos, é uma troca de energia. Os meninos passam a sair também no bloco. É bonito de ver”, exclama. Para ele, que sai no bloco há 7 anos, o mais bacana são mesmo as amizades. "Venho sozinho, mas já encontro a galera aqui. Fiz muitos amigos e nos unimos ainda mais quando saímos no Carnaval. O bom é que você conhece as pessoas sabendo que são da paz", explica.

Diferente de Ronaldo, Reinaldo da Paz, 28, já chegou a terminar dois noivados e um casamento por conta do Gandhy. “Elas tinham ciúme da minha saída no bloco, e eu escolhi o bloco. Isso aqui não é sobre pegação, é sobre ser uma família”, pondera. 

Olhando de longe, é claro que era possível avistar um outro homem emaranhando mulheres com os colares, no intuito da famosa troca por um beijo. O assédio seria uma outra discussão, mas bastava olhar um pouquinho mais para perceber as diversas idades dentro e fora do bloco, bem como os diversos comportamentos. A maioria dos foliões está ali, de fato, para ser abençoado e para trocar, na verdade, o que há de mais poderoso: uma saudação à fé.