'Agora voltei o espelho para mim mesmo', diz escritor Silviano Santiago

Ensaísta está entre as atrações da Flica 2018, que este ano acontece entre os dias 11 e 14 de outubro

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  • Kátia Borges

Publicado em 26 de setembro de 2018 às 05:53

- Atualizado há um ano

. Crédito: Cláudio Nadalin/ Divulgação

Entre as principais atrações da oitava edição da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), que este ano acontece entre os dias 11 e 14 de outubro, Silviano Santiago, 81 anos, dividirá com o poeta e contista baiano Marcus Vinicius Rodrigues a mesa A feroz inquietude da escrita, que terá mediação da professora Luciene Azevedo, na sexta-feira, dia 12/10, às 15h.

Acompanhe a cobertura completa da Flica 2018

Nesta entrevista, o escritor e ensaísta – vencedor, entre outros, dos prêmios Oceanos e Machado de Assis – fala sobre algumas dentre as muitas questões que mobilizam o seu interesse, a exemplo da busca pela originalidade, uma constante em seus trabalhos ficcionais, e dos romances de sobrevivência, que contemplam a velhice.  O senhor virá a Cachoeira no próximo mês, participar de uma mesa intitulada A feroz inquietude da escrita. Em seu livro, Genealogia da ferocidade, o senhor fala sobre a domesticação de Grande Sertão. Como se dá esse processo? A domesticação a que me refiro se relaciona à crítica literária que faz a intermediação entre o possível leitor e a obra de arte de qualidade, relativamente, de difícil compreensão. Nesse processo, para facilitar o acesso ao leitor comum, o crítico é obrigado muitas vezes a atenuar as asperezas e a oferecer uma imagem menos agressiva, menos feroz, daquela obra. Esse é o caso de Grande Sertão Veredas, que é feroz e animal e que, no entanto, foi domesticada para ser compreendida. Essa domesticação tem um lado positivo e um lado negativo. O lado positivo é que ajuda mais leitores a compreenderem. O lado negativo é que eles compreendem menos, pois não enfrentam a ferocidade da obra.

[[publicidade]]Houve uma domesticação das obras modernistas, não? Claro, basta olhar os livros de literatura. A produção modernista nunca foi de fácil alcance. Você pega Macunaíma, por exemplo. Saiu com apenas 300 exemplares na primeira edição. A segunda já teve 1.500. A terceira, publicada quinze anos depois, três mil. Macunaíma só passa a ser lido nos anos 1960, assim como o próprio Oswald de Andrade. Então você vê que a obra de arte que tem asperezas, que não se dá facilmente, que não é um Paulo Coelho, sempre precisa de intermediação. Ela facilita o ingresso do leitor em um universo que é, por definição, áspero e feroz. Fala-se muito da chamada crítica negativa e, sobretudo da ausência de crítica. Mas aí já é outra coisa, diferente da que falamos. A crítica negativa é sobre obras que não são geniais. Ela só faz sentido sobre os novos. O que acontece em relação a uma obra que está surgindo? Você pode sempre elogiar porque é novo e o que é novo precisa de incentivo. Ou você pode fazer uma crítica negativa, desde que não seja maldosa. Maldade é outra coisa. Estamos falando de uma crítica apoiada em argumentos sólidos e coerentes e que, por isso mesmo, não pode ser considerada negativa, pois tem a intenção de melhorar aquele autor, de ajudá-lo a compreender as limitações de sua escrita naquele momento. Sem a crítica, o escritor não consegue se aperfeiçoar no seu ofício. (Foto: Fernando Azevedo/Divulgação) Há uma contraposição interessante entre o romance de sobrevivência e o de formação. Como o senhor vê essas duas abordagens? São duas coisas completamente diferentes. O romance de formação trata da juventude no limiar da formação profissional. O romance de sobrevivência, dos últimos anos de vida. Este último interessa bem menos aos leitores, que preferem personagens mais jovens, o que não é uma novidade. Mas o meu interesse é justamente por um tipo de literatura pela qual crítica e leitores se interessam menos, que são as obras escritas na velhice e que tratam da velhice.

Em Machado, o senhor diz ter se baseado na costura enigmática entre a vida e a obra deste autor. Como trabalhou essa costura em seu romance? Isso é uma questão metodológica. Em geral, os críticos e professores analisam apenas o texto, eles não se interessam pela vida do autor. Essa é a tradição, o cânone crítico. Mas, desde Michel Foucault, pelo menos, começa-se a indagar sobre as relações entre a vida e a obra, é o que ele chama de subjetivação. Machado é uma tentativa de compreender essa relação que, para nós, é uma incógnita ainda porque não há uma tradição  Alguns de seus livros, a exemplo de Em liberdade e Viagem ao México, de certo modo, antecipam essa subjetivação na literatura brasileira. Comecei cedo nisso, é um interesse meu, uma certa originalidade que eu busco. Em sala de aula, eu explico o texto. Em romance, eu tento uma coisa mais de vanguarda.

Quais costuras enigmáticas o interessam no momento? Agora voltei o espelho para mim mesmo, estou escrevendo as minhas memórias. Deixo de ser, por assim dizer, a câmera e adoto o espelho. Estou no primeiro livro, sobre a infância. Vou até onde a sobrevivência deixar. É um processo em curso e falar sobre ele neste momento seria cair, talvez, no lugar comum.   O senhor já afirmou que Guimarães Rosa é contemporâneo deste século. O que, em sua opinião, caracteriza a contemporaneidade deste autor?   Me refiro à diferença entre os conceitos de atual e de contemporâneo. Nos anos 1950, eram atuais a Bossa Nova, a Bienal de São Paulo e a Poesia Concreta. Mas aqueles foram anos escuros também e muito difíceis. E essa escuridão permanece de maneira mais forte até hoje do que, propriamente, as suas luzes. Grande Sertão não era atual em 1950, mas é contemporâneo nosso. Vivemos na escuridão dos anos 1950, não suas luzes. E essa escuridão é Grande Sertão, não é a Poesia Concreta.Em que medida a literatura se coloca a serviço da história? O que chamamos de literatura é uma forma de saber, daí as asperezas. Livros como Macunaíma, ou a poesia e os manifestos de Oswald de Andrade, não têm público quando são publicados, porque existe ali uma visão de Brasil e de arte que não se dá a compreender facilmente. A boa literatura segue por séculos, pois, sendo de difícil apreciação, demora a ser compreendida. É preciso haver maior esforço em torná-la mais lida pelos jovens, pois é uma forma de saber tão forte, original e rica quanto história, sociologia, matemática ou geografia. Um grande escritor é aquele que, possuindo um conhecimento multidisciplinar, é capaz de trabalhar com esse conhecimento em um enredo ficcional.Como o senhor vê os problemas educacionais que enfrentamos hoje, sobretudo no campo da leitura? Se fosse diferente, estaríamos no século das luzes e não na escuridão. Mas o problema da qualidade da educação é o mesmo no Brasil e em todo o mundo. Quando cresci, nos anos 1950, já era ruim e hoje piorou muito. De maneira geral, mesmo nos Estados Unidos, a educação hoje é decadente: faltam verbas e há perseguição a professores e alunos. Esse é um dos grandes males do presente.