Além da fé e da festa: ambulantes apostaram na criatividade para lucrar no Bonfim

Encontramos open bar de caldo de cana, 'água argentina' e muito mais; confira

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  • Da Redação

Publicado em 16 de janeiro de 2020 às 19:40

- Atualizado há um ano

. Crédito: Reprodução

Mesmo antes de chegar à Igreja da Conceição da Praia, no Comércio, já era possível avistar os isopores pela janela do carro de reportagem. No começo da Avenida Contorno, a cena dos vendedores em meio a uma multidão vestida de branco dava uma certeza: era dia de Lavagem do Bonfim. Para além da festa e da fé, os ambulantes veem a data como uma oportunidade de ganhar um dinheirinho.

Ao pisar no chão do Comércio, comecei a ouvir muitas vozes que gritavam ofertas de todo tipo de produto. Poucos metros quadrados agrupavam vendedores de chapéu, fitinha, água de coco, cachorro-quente e outros rangos para consumo rápido.

O que foi um alívio em uma caminhada de 8 km (na verdade, pouco mais de 6,5 km) em um calor de 29ºC, mas com uma sensação de muito mais. Logo pensei que, pelo menos, não iam faltar opções para me hidratar e me alimentar.

Eu não era a única de olho nos produtos dos ambulantes: os fiéis precisam de fitinhas para amarrar no gradio e os foliões de muita cerveja. Em meio à festa, são esses vendedores que trabalham para fazer a folia dos outros.

Repórter vendedora Percebi como os 'foliões' estavam ávidos pelo que era comercializado no trajeto. Enquanto conversava com o vendedor Cristiano Santos, 35 anos, em frente à mesa onde ele expunha copos, virei vendedora por alguns minutos.

Logo surgiram cinco compradores me perguntando sobre o produto. Me prontifiquei em dizer o preço, que era R$ 5. Acredito que fui bem sucedida na missão, afinal, foram três copos comprados. Mas pedi para os clientes esperarem o dono voltar para entregar o dinheiro - vai que eu estava me intrometendo demais.

Apesar das muitas horas debaixo do sol, os ambulantes não reclamam porque a Lavagem é divertida e, acima de tudo, dá o almejado retorno financeiro.

Toneladas de desejo Tem gente que não abre mão de trabalhar na festa. Ao ser perguntado do porquê vender fitinhas na celebração, José Azevedo, 50, não hesitou em dizer que as vendas estavam bombando esse ano. Ele contou que não importa onde está trabalhando, a folga no dia da lavagem tem que rolar. “Posso até trabalhar dobrado para compensar”, ressaltou.

O vendedor tinha uma explicação para a grande procura pelos produtos. É que ele pensa a arrumação do expositor especialmente para chamar a atenção dos clientes. Enquanto a gente conversava, José apontava para as bonecas vestidas de baiana que enfeitavam a sua venda móvel. Em cinco horas, comercializou 1,2 mil fitinhas: o que dá pra realizar, pelo menos, 3,6 mil desejos.

O desejo do vendedor de espetinho Rogério Dalto, além de botar o povo pra provar seus tira-gostos, era fazer amigos na festa. Ele contou que curte conversar com os clientes, ainda mais se eles forem de fora do país. Isso faz com que ele esqueça do cansaço por ter acordado às 3h para se preparar para as vendas.

O famoso 'come água' também é um aliado na hora de deixar o cansaço pra lá. Essa é a estratégia do vendedor de doleira Gil Jesus, 40, que abriu uma cerveja enquanto conversava comigo, no meio da avenida. Rogério vende espetinho na praia e foi ao Bonfim para aumentar os ganhos (Foto: Marina Hortélio/CORREIO) A ambulante Edleusa Lima, 47, gosta de trabalhar na Lavagem por poder participar das celebrações ao Senhor do Bonfim todos os anos. Meio tímida, ela me conta que é católica e se sente muito bem nessa data.

Corredor de isopor Em dia de celebração, os automóveis e motos deixam as ruas entre o Comércio e a Colina Sagrada para dar espaço para a procissão, toda ela ladeada por caixas de isopor, que delimitam o que é calçada e o que é rua.

É como no Carnaval: do lado de cá do isopor fica quem está observando a folia passar, e o outro lado, junto com toda a muvuca, é reservado para quem quer participar de forma ativa da festa.

Open bar de caldo de cana Com tantas opções diferentes para escolher entre os isopores e carrinhos de comida, ser inventivo é essencial. Isso era o que não faltava entre os vendedores: tinha até rodízio de caldo de cana! Esse era o último open bar que eu esperava ver na Lavagem do Bonfim. Vendedor apostou em open bar de caldo de cana (Foto: Marina Hortélio/CORREIO) Uma moenda de cana estava em pleno vapor para atender ao tal open bar. Quem comandava tudo era Aurino Oliveira, que teve a ideia de vender a bebida no Bonfim depois de uma sugestão do amigo, João.

Infelizmente, o empreendimento estava lucrando pouco. “A procura não tá muito alta, mas é porque as pessoas preferem outras bebidas aqui na Bahia", lamentou, praguejando as cervejas não tão geladas quanto seu caldo.

Concorrência gringa Duas que não precisavam de muita criatividade para conseguir clientes eram as argentinas Valeria Ceballos, 24, e Laila Garcia, 24. Imagine alguém gritando “quer água, moço?” com um sotaque nada baiano. Foi isso que me fez ficar curiosa sobre o que elas estavam fazendo cuidando de um isopor numa festa popular de Salvador.

Valeria contou que veio com duas amigas para o Brasil e passou cerca de sete meses na capital baiana. Para se manter aqui, as viajantes vendem rifas por aí. Em um dia de trabalho, algum soteropolitano sugeriu que elas comprassem água para revender na festa, e a 'água argentina', ou melhor, das argentinas pintou na Lavagem."Agora tá fraco porque tá vazio por aqui (perto da Conceição da Praia), mas mais cedo estava melhor. A gente comprou 180 garrafinhas e vendemos um pouco mais que a metade já", disse Valeria.Deve ter dado tudo certo porque, enquanto eu fazia o caminho de volta para o Elevador Lacerda, vi de relance as duas amigas andando tranquilamente pela Avenida Estados Unidos com um grupo de pessoas.

No precinho Mesmo com muita gente, os preços não estavam muito diferentes do normal, garantiram os vendedores. Dois espetinhos com farofa e vinagrete por R$ 10 é um valor honesto, ainda mais com a fome que bate no trajeto.

A estrela da festa, a fitinha do Bonfim, estava por R$ 0,20 na região do Comércio e o vendedor não esperava mudar a cifra ao chegar na Colina Sagrada.

Entre as cervejas, tinham as tradicionais promoções de três por R$ 10, para a lata maior, e duas por R$ 5 para a piriguete.

Só um vendedor de doleira confessou mudar o preço a depender do cliente. “Se vier falando um português embolado ou inglês, aí eu faço mais caro”, admitiu Lauro Paixão. Ele ainda contou que estava vendendo o porta-grana por R$ 10, o dobro do que ele cobra normalmente. Senhor do Bonfim tá vendo.

*Com orientação do chefe de reportagem Jorge Gauthier.