Alfazema, xixi, dendê... Salvador tem cheiro de quê?

Do Beco do Mijo ao tabuleiro da baiana, soteropolitanos citam as fragrâncias e fedores que identificam cada parte da cidade

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 29 de março de 2017 às 04:00

- Atualizado há um ano

Nas esquinas, a fumaça acima do tabuleiro exala o cheiro vindo do acarajé frito na mistura fervente de azeite de dendê e cebola. Da orla, o aroma de algas e a brisa azul-salgada do mar nos leva até à praia. Dos mercados populares, emanam ervas, temperos, especiarias, frutas e também odor fétido de peixe decomposto no fim do dia. Na rima, Salvador é fragrância e fedor.

Os cheiros dessa cidade têm hora, lugar e dinâmicas bastante próprias. Em janeiro, as vassouras e água de cheiro das baianas tomam conta das escadarias na tradicional Lavagem do Bonfim. Em fevereiro, é a vez dos frascos de alfazema perfumar o mar, a Casa de Iemanjá e os circuitos de Carnaval com a tradicional passagem dos Filhos de Gandhy.

Chico Lima, presidente do Afoxé Filhos de Gandhy, explica que a alfazema, bastante utilizada nos rituais de umbanda e candomblé, é símbolo de purificação. “É uma coisa do axé que virou sinônimo da nossa passagem. Conseguimos colocar essa leitura de paz, de purificação do ambiente e as pessoas”.

Entre as propriedades do perfume de alfazema está o poder de fazer relaxar. “É sempre um cheiro bom e calmo, seja numa vovó ou num Gandhy quando passa. Todo mundo deveria ter em casa, faz bem borrifar um pouco para ter um sono tranquilo”, aconselha Roberto Pires, especialista em fragrâncias.Hummm, que fomeMas se tem um cheiro que resume Salvador de ponta a ponta, de esquina a esquina, com certeza esse cheiro é o de dendê. Em todos os bairros, no final das tardes, esse óleo avermelhado seduz os passantes pelo nariz. “Quando as pessoas descem dos ônibus voltando do trabalho param  aqui por causa do cheiro, que vai longe. O povo fala que é uma tentação. Basta a gente colocar no fogo, que ele exala. É marcante mesmo”, diz a baiana de Brotas, Meire Carvalho Santos, 35. Meire desperta a fome de quem passa e sente o cheiro do acarajé fritando no dendê(Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO)Usado em iguarias como o acarajé e a moqueca, próprios de nossa culinária, o dendê é, para a chef de cozinha Leka Hattori, o incenso soteropolitano. “O dendê é como uma vela aromatizada, que exala cheiros ao ser submetida à  uma fonte de calor”, compara. Ainda segundo ela, devido ao fato de o acarajé ser tão popular, reconhecido como patrimônio imaterial da humanidade há treze anos, os turistas sempre têm o desejo de provar e costumam reagir bem ao cheiro do fruto.

A diversidade dos aromas da nossa gastronomia despertam saudades no serralheiro Dênis Cerqueira Calmon. Soteropolitano, mas morador do Rio de Janeiro, ele conta que por lá predomina o cheiro de alho, tanto nos restaurantes quanto nas casas. “O que mais sinto falta na Bahia são os cheiros diferentes de cada prato. Você sente o cheiro que vem da casa do vizinho e já sabe o que ele está fazendo. Na frente de cada porta que você passa, e a boca enche de água”.

Pertinho de casaDo bairro nobre ao subúrbio, cheiros e odores despertam e disputam os sentidos. O aroma que salta dos eucaliptos da Praça Professor Pedro Calmon, no Caminho das Árvores, por exemplo, inspira o estudante Davi Cordeiro, 22, a espantar a preguiça. “O cheiro é maravilhoso, principalmente quando chove. Eu detesto correr, mas direto me pego com vontade de correr na praça só por causa do cheiro. Me traz paz”, conta.

Em Cosme de Farias, o marceneiro João Miguel Carneiro, 43, resume o que sente no seu bairro. “Aqui o cheiro é bom, de cerveja. É cheiro de favela mesmo, onde as pessoas sentam juntas para tomar uma, se cumprimentam e se ajudam em comunidade”, diz.

O deficiente visual Ednilson Sacramento, 55, costuma se orientar e reconhecer os lugares pelos cheiros. “Salvador é olfato. A Avenida San Martin tem cheiro de borracharia, o Dois de Julho cheira a armazém de secos e molhados, a Pituba tem cheiro de restaurante”, descreve. Ixe, fedeu!Há quem acredite que nem tudo na cidade é flor que se cheire. “Depende do local. Em cada esquina, há cheiro de urina. Se passar próximo a um canal como o do Lucaia [no Rio Vermelho], é cheiro de esgoto. Se for em Água de Meninos, é peixe podre. Salvador é terra de todos os cheiros”, comenta Lúcio Ricardo.

Enquanto o borrifo verde de alfazema dos Gandhy perfuma as ruas, o fedor de urina fez até com que o povo mudasse o nome da Rua do Curriachito, ao lado do Cine Glauber Rocha, para Beco do Mijo. Roberto Pires sente esse cheiro de xixi na rua como o “cheiro da falta de educação”. É que o problema do xixi, aliás, não se limita ao fedor. Em 2009, os mijões deram um prejuízo de cerca de R$500 mil à prefeitura na recuperação do viaduto da avenida Vasco da Gama, que teve estruturas corroídas pela acidez da urina humana.Mijão em ação em via pública: cena comum na cidade (Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO)Os gastos semanais para limpeza de passarelas e viadutos com carros-pipa chegam a custar entre R$5 mil e R$7 mil, a depender do tamanho, segundo informou a Secretaria de Manutenção (Seman). Ou seja, o prejuízo é no nariz, no bolso e até mesmo na saúde, já que a urina é uma via de transmissão de doenças. “É uma questão mínima de educação. Além do que, fazer xixi na rua é também um caso de atentado ao pudor”, diz o presidente da Limpurb, Kaio Moraes.

Mas, para Roberto, Salvador até evoluiu nesse sentido. A seu ver, o mal cheiro de urina na cidade já foi maior. Talvez isso se deva à maior disponibilização diária de banheiros químicos em locais estratégicos da cidade. Segundo Moraes, são mais de 290 sanitários espalhados em pontos turísticos, praças e praias com grande frequentação. A população pode, inclusive, identificar os locais com incidência de fedor de xixi e solicitar, através do telefone 156, a instalação de banheiros químicos. “A fiscalização é difícil porque a pessoa se esconde para fazer, não é simples identificar. Por isso as denúncias são importantes”, ressalta. Apesar da Lei Municipal 8.512/13, que pune quem joga lixo e urina na rua, válida desde 2015, no Carnaval deste ano, onde isso é comum,  ninguém foi multado.

Um xêro para chamar de nosso Cansada desses fedores, Salvador, vaidosa que é, resolveu se perfumar. A prefeitura encomendou, no ano passado, um “Xêro” exclusivo para ela exalar nas festas de Réveillon e Carnaval. A fragrância, desenvolvida pela empresa baiana Avatim, é composta por elementos amadeirados como cashmere, vetiver, âmbar cinza e almíscar, que se juntam ainda com noz moscada, alecrim, cardamomo, zimbro bergamota, mandarina, limão siciliano, madeira de cedro, grapefruit e flores brancas. 

A escolha dessas notas foi aprovada por Roberto Pires. “Achei legal porque tem um frescor e Salvador tem um pouco disso, porque faz muito calor e temos aquela coisa do banho, de estar sempre cheiroso. Tem algumas coisas quentes, que são nossas também, e uma sensualidade que o almíscar dá. Captaram bem a essência”, comentou o especialista na época do lançamento. 

Aliás, baiano que é baiano não manda abraço e nem beijo, manda logo um cheiro, que já vale pelos dois. “Dar um cheiro”, segundo Nivaldo Lariú, autor do Dicionário de Baianês, é uma expressão tipicamente nossa que equivale a um conjunto de coisas, como um afago, um beijo, um carinho, ou o mero gesto de tocar. É bastante comum ouvir mães pedindo para dar um cheirinho nos filhos, por exemplo. O mesmo acontece com padrinhos e afilhados, entre avôs e netos, casais e por aí vai. “É uma coisa bem baiana que mostra a infinidade da nossa língua, de criar uma proximidade entre os locutores”, analisa.