Amigos de motociclista que morreu ferido por linha com cerol fazem protesto

Associação de Motociclistas também está presente; eles pedem mais fiscalização

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  • Da Redação

Publicado em 2 de setembro de 2018 às 10:20

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Alexandre Lyrio/CORREIO
. por Almiro Lopes/CORREIO

Na frente da Honda CB 650 cilindradas, a motocicleta que se envolveu no acidente, havia uma camiseta que estampava a foto da vítima e uma frase: “Um amante da natureza que perdeu a vida para uma brincadeira criminosa”. Familiares e amigos do aposentado João Arcangelo Rend, 56 anos, fizeram um protesto na região da Boca do Rio reivindicando mais fiscalização do poder público no combate ao uso de linhas "temperadas" com cerol para empinar pipas e arraias. João estava em uma moto quando teve o pescoço atingido por uma linha, há uma semana. Ele chegou a ser socorrido, mas não resistiu e morreu.

A Associação dos Motociclistas do Estado da Bahia (AMO) calculou em mais de mil o número de motos presentes no protesto que ocorreu no terreno do antigo Aeroclube, na Boca do Rio. A vítima transitava pela avenida Octávio Mangabeira, que passa em frente ao terreno, quando foi atingido. O local é conhecido por receber, principalmente nos finais de semana, uma grande quantidade de pessoas empinando arraias. "A moto era a vida do meu tio. A moto e a natureza. Estamos aqui para cobrar fiscalização e conscientizar quem pratica essa brincadeira criminosa", afirmou João Vitor Rend, 19 anos, sobrinho do aposentado. “O pai que traz uma criança para se divertir com linha com cerol é um assassino”, disse Terezinha Rend, irmã da vítima.  

De lambretas a Harley Davidson, os motociclistas, além de ciclistas, lotaram o espaço e, com carros de som e faixas, discursaram contra os empinadores. “Não estamos pedindo nada. Estamos cobrando! Nossa intenção é chamar a atenção das autoridades para o cumprimento da lei”, destacou o presidente da AMO, Daniel Filho, 59 anos. Ele se refere à Lei Municipal 9217/2017, que dispõe sobre a proibição do uso de pipas com linha cortante em área pública.    (Foto: Alexandre Lyrio/CORREIO) O protesto teve o apoio do Sindicato dos Motoboys e Mototaxistas. “No mesmo dia, foram mais três vítimas no mesmo local. E ninguém fez nada”, disse Henrique Baltazar, presidente do sindicato. “Teve um evento de pipa no sábado, na Ribeira, onde se vendeu cerol. No domingo, eles trouxeram o material para cá e fizeram um festival. Tiraram uma vida e feriram mais três”, contou. Entre os motociclistas, muitos relatos de acidentes envolvendo linhas com cerol.

Um deles, o bacharel em direito Adriano Ventin, há três anos sofreu dois cortes nos braços, um no punho direito e outro no antebraço esquerdo, o qual ficou com movimentos comprometidos. “Passei por duas cirurgias difíceis, perdi um pedaço do músculo e não morri por milagre”, disse Adriano, que guarda uma grande cicatriz. “Moro aqui em frente. É a terceira pessoa que vejo morrer. Presencio diversos acidentes, além de ter sido vítima uma vez”, relatou o vigilante Edmundo Campos, 56 anos, mostrando uma cicatriz no lábio superior após ficar ser ferido há um ano.

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Antena Além de conscientizar os empinadores de pipas e arraias, os motociclistas apontam uma forma segura de se proteger das linhas com cerol. Trata-se de duas antenas que são instaladas no guidom das motocicletas. A maioria dos motociclistas que estavam no protesto não utilizava as antenas, o que foi criticado pelos próprios manifestantes. “Estamos vendo aqui que 80% das motos estão sem antenas. Precisamos nos conscientizar também, disse ao microfone um dos líderes do protesto. “Muita gente não usa porque acha feio. Meu próprio filho não usa. Eu digo a ele que feia é a cicatriz do acidente. Isso se ele não morrer”, afirmou George Moreira, 67 anos, que se diz motociclistas “desde que nasceu” e um dos poucos a fazer questão de instalar o acessório.

Riscos Os amigos relatam que João Arcangelo era um homem preocupado com o meio ambiente e um motociclista experiente. Ele tinha, inclusive, noção dos riscos. E até evitava trafegar pela região da Boca do Rio. Naquele domingo, porém, o funcionário recém-aposentado da Petrobras chamou a esposa para sair à procura de baleias na orla de Salvador. Já retornando para casa, que fica no bairro do Stiep, foi surpreendido por uma dor que ele só entenderia a causa segundos depois de estacionar a moto. Uma linha "temperada" com cerol enroscou em seu pescoço.

Ele chegou a ser socorrido e encaminhado para um hospital particular, mas morreu um dia depois. O sepultamento aconteceu na terça-feira (28), no Cemitério Jardim da Saudade, em Brotas. Um dos primeiros motociclistas a chegar no local após o acidente, que preferiu não ser identificado, disse que tentou estancar o sangue e depois parou um carro para socorrer a vítima. “Fiquei todo ensanguentado. Tinha muito menino aqui empinando arraia. Não tem como saber quem foi”, relatou o motociclista.   

Corte Na hora do acidente, após descer do veículo, na altura do antigo Aeroclube, João percebeu que estava com um corte na região do pescoço e que sangrava muito. Não demorou muito para perceber que a fissura foi causada por uma linha com cerol - naquela região é comum encontrar pessoas que se divertem soltando pipas. A venda e a utilização do cerol, no entanto, é proibido em Salvador desde junho de 2017. 

A esposa que estava na garupa não ficou ferida. João, por sua vez, teve um corte grande no pescoço. Ele chegou a ser socorrido por uma outra pessoa que transitava pela via e encaminhado para o Hospital da Bahia, onde deu entrada, segundo familiares, entre 17h e 18h. “Ele perdeu muito sangue, estava com a camisa muito suja. Ainda conseguiu descer da moto e chegou a tirar o capacete e a própria camisa. Como ele era uma pessoa muito preocupada, foi primeiro ver se estava tudo bem com a esposa”, conta uma das irmãs da vítima, a secretária Rita Rend, 50. Projetos João trabalhou durante 30 anos na empresa estatal e, há dois anos, estava aposentado. Ele havia, há pouco tempo, comprado um barco, que era utilizado para fazer pescarias. “Meu irmão iria construir uma casa de praia, um outro sonho dele, um projeto para curtir com a filha”. A vítima tinha uma filha de 19 anos. 

A irmã relembra ainda que o irmão era uma pessoa muito preocupada com questões de segurança. No bairro do Stiep, por exemplo, os vizinhos conheciam ele por ser um homem muito atencioso com o bairro. “Ele sempre foi muito preocupado com a segurança do local, tinha conseguido, recentemente, colocar uma guarita”, disse. 

O trajeto que João realizou no dia do acidente não era feito com frequência, o medo era justamente sofrer um acidente. “Não, esse é o problema. Ele não fazia, achava perigoso. Sabia dos riscos”, lamenta o sobrinho João Galvão, 19. 

O motociclista chegou a realizar uma cirurgia na unidade de saúde, mas não resistiu ao sofrer uma parada cardíaca já por volta das 6h desta segunda-feira (27). O seu corpo foi sepultado sob forte emoção logo após às 11h, no Cemitério Jardim da Saudade.  Vítima deixa mulher e filha (Foto: Reprodução) Ação de combate

A Secretaria Municipal de Ordem (Pública), em parceria com a Guarda Civil Municipal (GCM) e a Polícia Militar da Bahia (PM BA), realizou, neste sábado, 01, uma operação de fiscalização na região do antigo Aeroclube (Boca do Rio) e Parque das Dunas para combater o uso da linha temperada com vidro, popularmente chamada de cerol, e linha chilena por quem solta pipa e arraia em Salvador.

Durante a operação, foram encontrados nos locais diversas linhas chilenas, nas cores verde, amarela, laranja e azul. Essa linha é fabricada e preparada com óxido de alumínio, que é extremamente perigoso e letal. Também foram recolhidos vários utensílios de preparação da linha com cerol, como tubos de cola e pó de vidro. 

“Isso demonstra que os praticantes não estão ali por brincadeira, eles sabem do risco que causam à população. A nossa resposta será com o aumento da fiscalização para evitar novas vítimas dessa prática ilegal e irresponsável”, disse o secretário de Ordem Pública, Marcus Passos.

Ainda durante a ação, os agentes perceberam a chegada de alguns grupos, que logo dispersaram ao perceberem a presença da equipe. No total, 13 pessoas, entre fiscalização da Semop, guardas civis e policiais militares, participaram da operação.   

Fiscalização

A Semop começou a fiscalizar o uso de pipas com linhas cortantes em áreas públicas de Salvador desde junho do ano passado, após a publicação da Lei Nº 9217/2017, de 2 de junho, que proíbe o uso de cerol ou de qualquer outro tipo de material cortante nas linhas de pipas, de papagaios, pandorgas e artefatos lúdicos semelhantes, para fins de recreação ou com finalidade publicitária. 

Quem descumprir a determinação pode sofrer advertência e multa no valor de R$ 70,00, no caso de reincidência. Os valores arrecadados com a multa serão destinados ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (FMDCA). 

As ações de fiscalização são intensificadas de agosto a outubro, período em que as condições do vento facilitam a prática de soltar pipas e arraias. Nas operações, os fiscais chegam de surpresa, mas os praticantes correm, deixando no local as linhas chilenas e com cerol.

Crime Em entrevista à TV Bahia, o delegado titular da 9ª Delegacia (Boca do Rio), ACM Santos, afirmou que as investigações já foram iniciadas para buscar o autor do crime. No entanto, ele ressaltou que será difícil chegar ao culpado pela morte do motociclista.

"Vamos fazer um trabalho principalmente de conscientização. Já está sendo colocada viaturas no local para chamar a atenção das pessoas para de que forma podemos evitar isso. Eu tenho plena convicção de uma coisa: vai ser difícil elucidar a autoria desse crime, mas o trabalho de prevenção será feito", disse. Ainda de acordo com ele, o crime é configurado como lesão corporal seguida de morte.