André Lemos: Dobras tecnológicas do tempo na Bahia

Progresso é inegável, mas trouxe a vigilância algorítmica de dados

Publicado em 15 de janeiro de 2019 às 03:16

- Atualizado há um ano

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Salvador, janeiro de 1979 Estamos há 15 anos sob ditadura militar, em meio a uma cultura de massa restritiva e americanizada. Assisto pela nossa primeira TV colorida o JN com Cid Moreira informando que em março o general Figueiredo começará o processo de abertura democrática. O tripé “informática – engenharia genética (a primeira bebê de proveta nasceu em 1978) – energia nuclear” é a locomotiva do mundo, mas o gap tecnológico entre países centrais e periféricos é de décadas.  O Polo Petroquímico de Camaçari começa as suas operações, mas já nasce superado pela divisão internacional do trabalho. A infraestrutura urbana e os serviços públicos são muito deficientes.

Eu me preparo para o terceiro ano e o funil do vestibular. Nas escolas, poucos recursos audiovisuais. Computadores? Ouvíamos falar! Estudamos pelos livros didáticos comprados nas poucas e deficientes livrarias da cidade. Os mais abastados têm enciclopédias, que os pais exibem com orgulho. Nas bancas, apenas jornais e revistas locais (com poucos exemplares vindos do Sudeste).  Arte: Quintino Brito/CORREIO Para ter acesso a mais informações sobre arte e cultura, temos que ir ao aeroporto para comprar revistas estrangeiras, ou viajar para visitar lojas de vinis e livrarias de São Paulo ou Rio, onde, com sorte, podemos assistir a shows com estrelas mundiais. Os poucos canais de TV e rádio locais não são atraentes para adolescentes ávidos por novidades. Estou de férias. Ligo para os amigos que têm telefone (fixo, alguns alugados – era caríssimo ter uma linha) para irmos a um dos poucos cinemas, ao único shopping, à praia, ou jogar Pong e Space Invaders na casa de um deles (o pai trouxe um console dos EUA).

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Salvador, janeiro de 2019 Primeiro militar eleito por voto popular toma posse. O desenvolvimento da tecnologia nos leva da era da escassez à do excesso de informação, nos jogando no capitalismo global de dados e na plataformização digital da sociedade. A história mundial pode ser definida como antes e depois da internet. Hoje a vida é produzir, consumir e distribuir informações digitais.

Minha filha busca no aplicativo do seu celular informações sobre o ônibus no ponto mais próximo. Hoje ela não vai pegar um Uber. Eu, apressado, consulto o tablet para saber quanto tempo levarei até o meu destino. Escolho o caminho e deixo o Waze me levar.

Recebo pelas redes sociais e jornais online informações locais e mundiais que não cessam de dizer que o mundo não anda bem. Muita certeza e pouco diálogo entre humanos e bots. Ligo a TV por satélite. Passo pelo canal japonês e paro na TV francesa para ter informações sobre o movimento dos coletes amarelos, o perigo do Antropoceno, ou os problemas da África, continente ausente dos noticiários locais. 

No carro, pelo bluetooth, recebo ligações e, por comando de voz, peço para a assistente digital deixar lembretes e tocar músicas em streaming. Estaciono no trajeto e pago pelo celular, dizendo um não sem graça ao obsoleto vendedor de cartelas. Sem dinheiro no bolso, pago (quase) tudo pelo relógio. Ainda no veículo, circulo documentos em ambientes online de compartilhamento, mantendo os alunos informados. 

No meu gabinete, dou bom dia ao alto-falante inteligente que recita a agenda e avisa que a aula vai começar. Salvador oferece um ecossistema midiático pós-massivo, hubs de startups, centros educacionais de tecnologia, monitoramento e vigilância georreferenciados, semáforos inteligentes, redes de alta velocidade… Realidade bem diferente de 40 anos atrás.

 O progresso tecnológico das últimas décadas é inegável. Mas com ele vem a assustadora vigilância algorítmica de dados e o domínio da economia pelos “big five” (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft). A tecnologia parece sempre avançar, mas não é um domínio independente. Nem sempre o seu desenvolvimento anda em fase com a justiça e a igualdade social. Ele não nos protege do empobrecimento cognitivo, ou do retrocesso político. Saúde, educação, segurança e infraestruturas urbanas continuam deficientes. Os excluídos ainda são muitos.

A Bahia está em último lugar no índice do ensino médio e o investimento em C&T só diminui. No cenário nacional não há motivos para otimismo. Há sempre dobras no tempo que podem nos levar a emancipações ou retrocessos. Esperemos que 2019 não nos leve de volta a 1979!

* Professor da Faculdade de Comunicação da Ufba e pesquisador do CNPQ.