Angustiante, 'Dois Pesos, Duas Medidas' expõe gordofobia nossa de cada dia

Protagonizada pelos atores baianos Daniel Calibam e Fernanda Beltrão, espetáculo é dirigido por João Guisande e está em cartaz no Teatro Sesi Rio Vermelho 

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  • Naiana Ribeiro

Publicado em 28 de novembro de 2019 às 05:10

- Atualizado há um ano

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Dois Pesos, Duas Medidas é, sem dúvidas, um dos melhores espetáculos e também um dos mais angustiantes que já assisti na vida. Explico: enquanto gorda, é impossível não me identificar com quase todas as situações apresentadas pelos atores Daniel Calibam e Fernanda Beltrão, que protagonizam a peça dirigida por João Guisande. Em um pouco menos de 90 minutos, a obra aborda diversas questões ligadas ao corpo gordo, como a pressão estética para atingir o padrão de beleza considerado ideal pela sociedade desde a infância, o bullying na escola, a normalização da cirurgia bariátrica, além da gordofobia diária, dos preconceitos e das crises de ansiedade.

Antes de tudo preciso ressaltar que, nesse mundo em que o corpo magro está estampado e é glorificado nas capas de revistas, televisão, propagandas, redes sociais, etc, é muito representativo ter um espetáculo protagonizado por dois atores gordos.

Logo na primeira cena - em que os protagonistas evidenciam suas relações conflituosas com a balança - pensei que não aguentaria assistir ao restante do espetáculo. Ouvi algumas risadas vindas da plateia e me questionei: Como é que o sofrimento de alguém pode ser motivo de riso para o outro? Por que o corpo gordo é visto como piada? Foi torturante reviver por alguns minutos os dilemas que passei ao longo da vida e ainda passo por conta do meu peso. Mal sabia que esse é apenas o começo de um longo processo provocativo para que o público se questione, reflita e enxergue beleza nos corpos diversos - passando pelo processo de entendimento e superação com os próprios protagonistas.

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Sem uma dramaturgia linear e bastante fragmentada, o destaque da peça vai para os dois artistas gordos, que se utilizam da palhaçaria, da tragicomédia e do grotesco para compartilhar suas experiências e vivências pessoais. São lembranças e traumas como o desfile de princesa do colégio; dietas infindáveis; apelidos pejorativos nos ambientes familiar, estudantil e social; exclusão e reclusão social; superação e autoestima.

Três cenas merecem ser citadas. Em uma delas, muito simbólica, Fernanda envolve Calibam com uma fita métrica e ali são questionados muitos estereótipos em relação ao corpo gordo. Em outra, os atores mostram suas individualidades, levando em consideração que esses corpos gordos têm pesos e estéticas diferentes. Fica claro que gordo não é sinônimo de doença e nem de coisas negativas como feiura, preguiça, gula, desleixo, etc. O auge do espetáculo é um texto emocionante e libertador declamado por Fernanda que representa o momento do 'dar-se conta'. Essa é a hora de fazer as pazes e de perceber que “o corpo gordo que você se envergonha é lindo".

Com poucos elementos cênicos, nenhum cenário e muita dança, o espetáculo traz ainda músicas cantadas ao vivo. Algumas fazem parte de momentos mais leves, que incluem até um tom de nostalgia, com jingles comerciais famosos dos anos 1980 e 1990. Mas a mesma leveza que provoca humor também é responsável pela reflexão. 

Me incomoda, porém, a recorrente - e proposital, segundo os atores e diretor - associação de gordura à comida. Afinal, nem todo gordo é gordo porque come muito. Existe uma série de fatores que pode interferir no peso das pessoas. Apesar de reforçarem esse clichê justamente para questioná-lo em algumas cenas, isso nem sempre fica evidente, o que pode contribuir - mesmo que indiretamente - para reforçar um estereótipo ao invés de quebrá-lo, como se propõe a obra. "O clichê também gera reflexão", explicou Calibam ao final do espetáculo. A julgar pelos comentários após a peça, nem todos entenderam isso.    Independente disso, Dois Pesos, Duas Medidas é um grande exercício de empatia. Espectadores podem colocar-se no lugar das pessoas gordos, refletir sobre preconceitos, sobre as crueldades que um gordo vive nessa sociedade e começar a exercer o respeito. Para mim, mulher gorda, funcionou quase como uma terapia. Atravessei novamente pelas dores e lutas de ser fora do padrão nesse trabalho visceral e pude ressignificá-las junto com os atores. 

Serviço O quê: Dois Pesos, Duas Medidas – com Daniel Calibam e Fernanda Beltrão Quando: Quintas e sextas, às 20h, até 13 de dezembroOnde: Teatro Sesi Rio Vermelho Ingresso: R$30 (inteira) | R$15 (meia) Venda: Bilheteria do Teatro e no link www.sympla.com.br/doispesosduasmedidas

Ficha técnica Dramaturgia – Daniel Calibam, Fernanda Beltrão e João GuisandeDireção - João GuisandeElenco – Daniel Calibam e Fernanda Beltrão Coreografia e assistência de direção - Mônica Nascimento Direção musical e trilha sonora - Luciano Salvador BahiaIluminação – Alisson de Sá Figurino – Fernanda Beltrão e Guilherme Hunder Assessoria de Imprensa - Théâtre Comunicação / Rafael Brito Pimentel

*A jornalista é gorda e editora da PLUS, primeira revista para gordas do país