‘Anjo do Engenho Velho’, Valdir Cabeleireiro deixou discípulos e legado

Um ano após morte, família e amigos lembram sua generosidade e trajetória

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 10 de novembro de 2017 às 21:40

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arisson Marinho/CORREIO

Valdir Macário foi morto aos 45 anos. Seu legado e a saudade de parentes e amigos permanecem (Foto: Reprodução) O primeiro aluno, pupilo que fez parte daquele sonho desde o princípio, André Batista dos Santos, 42 anos, senta-se em uma das cadeiras que costumam acomodar clientes. Apesar do sorriso, seu semblante ainda expressa luto. Emocionado, em poucas palavras do seu longo depoimento ao CORREIO, André resume o que significou a perda de Valdir Macário, o Valdir Cabeleireiro, aos 45 anos.“Chegou um momento que eu pensei: ‘Pô, queria que fosse comigo. Era melhor que tivesse sido comigo’. Valdir era muito mais útil para a comunidade. Até hoje a gente se pergunta: Porque Valdir?”. Talvez nunca haja uma resposta convincente. Mas, um ano depois da morte brutal do cabeleireiro que fez as cabeças afros de toda Salvador, entre amigos e familiares no Engenho Velho de Brotas, pouco se fala de dor ou, menos ainda, de vingança. A palavra é legado.

André, o primeiro discípulo, é só uma das muitas provas de que Valdir multiplicou seu talento e, dessa forma, continua vivo. A lista de herdeiros de sua arte é grande. Além de André, tem Roberto, Paulista, Gustavo, Aílton, Luiz César, as suas cinco irmãs e outros tantos. Uma cadeira doada aqui, um espelho de presente ali, um lavatório de fim de ano. Mas, podia ser também o dinheiro de um aluguel, um toque sobre cabelo, um puxão de orelha, um emprego. Aliás, muitos empregos. André Santos foi o primeiro aluno de Valdir, que fez dezenas de outros discípulos (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Como um pai Valdir, dizem os seus, queria que as pessoas tomassem um rumo na vida. “Ele não precisava te conhecer. Ele só precisava saber qual era o seu problema”, afirma Roberto Goes Marques, 35. “Ele era uma estrela”, resume Clayton Santos da Silva, 35, o Paulista.“As pessoas não iam até Valdir para pedir ajuda. Ele que ia até as pessoas para ajudar”, diz Luiz César.Logo que o conheceu, Paulista estava desempregado. “Eu tinha recém chegado de São Paulo, desempregado. Aí o irmão dele me levou lá no salão. Foi quando Valdir me perguntou: ‘Vai fazer o que amanhã?’. Eu disse: ‘Nada’. Aí ele respondeu: ‘Então venha aqui’. No dia seguinte eu fui e ele já mandou eu cortar o cabelo de um rapaz. Cortei. Dali pra frente, foi só aprendizado”. Clayton Silva, o Paulista, estava desempregado quando chegou a Salvador e recebeu ajuda de Valdir (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Hoje, na Rua Almirante Alves Câmara, a principal do Engenho Velho, Paulista tem seu próprio salão. Um salão aberto com a ajuda de Valdir. “Ele ficava no meu pé porque eu só sabia cortar cabelo de homem: ‘Você vai ter que trabalhar com mulher’. Hoje 90% das minhas clientes são mulheres. Faço permanente afro muito bem graças a ele. Valdir era como um pai. Puxava minha orelha, brigava”.

Além de lhe dar um emprego e ensiná-lo a arte de fazer cabelos blacks, Valdir ajudou Paulista a construir sua própria casa. “Na verdade, eu morei em um imóvel dele, né? Me deu um lugar para morar até eu construir a minha casa”, conta o cabeleireiro.“Ele pegou Paulista arrasado, desprezado, tirou Paulista do nada. Ele forçou Paulista a construir a casa dele”, confirma Paulo Cezar dos Santos Silva, 49.Conhecido como Paulo Taró, ele era dos melhores amigos de Valdir Cabeleireiro.

Sobrenome: Cabeleireiro O homem que adotou como sobrenome a própria profissão poderia, facilmente, se chamar também Valdir Humildade ou Valdir Generosidade. Tanto que não tinha receio algum de formar uma concorrência contra ele próprio. Pelo contrário. Quanto mais gente o procurava para conseguir trabalho, mais ele ajudava. Acolhia quantos aprendizes aparecessem. Formava-os não necessariamente para trabalhar em seu salão.

Em muitos casos, cedeu um espaço de sua propriedade para que outros cabeleireiros pudessem abrir o próprio negócio.

“Todo ano, uns dois meses antes do final do ano, Valdir gostava de trocar algumas coisas do salão. Cadeiras, espelhos, ele tinha um estoque grande de material. Quem queria começar a cortar cabelo ia lá atrás de Valdir. Ele dava uma cadeira a um, um espelho a outro, um lavatório a outro”, lembra Paulista. Com Roberto, por exemplo, Valdir deu mais que um trabalho.“Meu irmão comentou com ele que eu estava desempregado. Foi suficiente. Ele, sem nem me conhecer, mandou eu ir lá”, cita Roberto.Mas, ousado, Roberto queria mais do que uma vaga no famoso salão de Valdir. “Eu disse a ele que tinha o sonho de ter meu próprio negócio”. Sem problemas. Valdir era um catalizador de sonhos. Sem cobrar aluguel por três meses, cedeu, além de uma cadeira e um espelho, um dos seus imóveis. Valdir ensinou Roberto Marques e ainda o ajudou a montar salão próprio (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) “No final dos três meses ele ainda perguntou se eu precisava de mais tempo: ‘Se quiser te dou mais três meses’, me disse. Consegui abrir meu negócio e ainda ia no salão dele todo dia aprender mais. Ele mesmo me incentivava: ‘Tira duas horas do dia e vai lá que te ensino mais. Você precisa se aprimorar’. Até então eu só sabia cortar cabelo de máquina. Minha gratidão será eterna”.

Roberto hoje tem seu salão na mesma Almirante Alves Câmara. “Valdir me acolheu, abriu as portas para a nova profissão que eu adotava naquele momento muito difícil da minha vida”, lembra o cabeleireiro. “Quando minha mãe faleceu, há um ano e meio, eu fiquei devendo dois meses de aluguel. Quando fui pagar, Valdir não aceitou. ‘Esse dinheiro vai ajudar a pagar as parcelas do funeral de sua mãe’. E assim foi feito. Valdir foi um anjo para mim”, diz Roberto, sem segurar as lágrimas.

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O último personagem a ser diretamente ajudado por Valdir também é cabeleireiro, mas sequer tem um salão. Luiz César Dória trabalha no meio da Rua do Trovador, na Curva do Parque, no Engenho Velho. A cadeira e as tesouras foram um presente de Valdir. “Ele trouxe dentro do carro dele, parou ali, atravessou a rua carregando as cadeiras, uma capa dourada e as tesouras”, lembra Luiz César.

Depois, Luiz ficou sabendo que Valdir estava procurando um ponto para que ele abrisse seu próprio salão. Não deu tempo. “Foi quando ele faleceu”, lamenta. Valdir doou para Luiz César Dória cadeira e tesouras, que hoje são seu ganha pão (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Exemplo que arrasta Acima de tudo, Valdir deixou um legado familiar. Ensinou sua arte às irmãs Alda, Avan, Aldair, Aldízia. “Começou com Ide, depois vieram as outras”, diz Aldízia Macário. “Naquele salão ele formou a mim, as irmãs dele e muitas outras pessoas. Do irmão caçula ele se tornou o irmão mais velho. Foi ele o responsável por isso tudo, pela construção da família”, afirma André.

Paulista, um dos pupilos, lembra dos áureos tempos em que o salão de Valdir Cabeleireiro funcionava como uma equipe. E Valdir confiava em todos. “Muita gente chegava no salão querendo fazer cabelo com Valdir. Só que Valdir falava: ‘Meu salão é uma equipe. Pode confiar’”. Para além dos familiares, difícil encontrar um funcionário do salão que não estivesse satisfeito com o patrão.

“Valdir, para cada funcionário, ele dava uma casa, dava carro. Se precisasse ele comprava o carro e dava mesmo”, diz o amigo Neivaldo de Oliveira Sales, 53.“Faça um censo. Se você for em cada casa desse bairro, se você bater em cada porta, vai saber que 80% das famílias aqui já foram ajudadas por Valdir”, destaca Paulo Taró. “Aquele salão sustentava muitas famílias”.Hoje, por conta de uma briga judicial com a ex-mulher de Valdir, o salão original está fechado e as irmãs abriram um espaço improvisado. Enquanto vão se restabelecendo, os pupilos vão botando para frente seu legado.

“Parece que ele ainda está ali. O salão cheio, a gente varando a madrugada. Mas, na verdade, ele está aqui com a gente, né”, acredita André. “Só tinha amor naquele coração. Tenho certeza que Deus vai guardar um pedaço do céu para ele”, completa Roberto. Alexandre Pires e Silvanno Salles, dois dos muitos famosos clientes de Valdir (Foto: Reprodução) Humildade Alexandre Pires, Tatau, Xande de Pilares, Silvanno Salles, além de todos os pagodeiros de Salvador e de fora. Valdir não só cuidava da beleza, mas também era amigo de todos eles. “Valdir era um anjo”, diz Márcio Victor, vocalista do Psirico.  

Apesar do contato com as estrelas, o próprio não gostava de holofotes. “Valdir tinha a possibilidade de comer nos melhores restaurantes, mas só gostava de almoçar em boteco, pô. Valdir tinha vergonha de lugar bom, não queria estar em lugar de rico. Ele não se sentia bem. A gente comprava todo dia quentinha para almoçar e dividia a quentinha. Comia eu e ele uma quentinha”, lembra Paulista. Valdir era tão discreto que os novos clientes não conseguiam reconhecê-lo.“O pessoal confundia ele. Via ele e não acreditava que era o famoso Valdir. Entrava no salão e perguntava a ele mesmo: ‘Quem é Valdir aqui’”, lembra Paulista.“Valdir era tão tímido que, quando ele começou a fazer cabelo de artista, ele tinha vergonha de ir na casa do cara. Mandava a irmã. Dizia: ‘Aldízia, vai ali fazer o cabelo de Beto Jamaica’. Quando falava o nome dele no palco, ele ficava todo envergonhado”.

Valdir também patrocinava eventos culturais, trios elétricos e até grupos de samba e quadrilhas juninas do Engenho Velho. “Ele participava das quadrilhas e patrocinava. Mas tudo discreto. Tudo sem badalação”.

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Origem sob sombreiro Antes de ser cabeleireiro, Valdir trabalhava com pintura de veículos. Depois, como hobby, passou a cortar cabelo na porta de casa. Isso em 1986. “Valdir chegava da oficina e começava a cortar os cabelos dos vizinhos. Eu fui o primeiro auxiliar dele. Eu ficava segurando o sombreiro para proteger os clientes do sol. Ele só tinha uma tesoura, um pente e a gillette, além de um banco de pau para os clientes sentarem”. “Era um banquinho, um tapete preto e um sombreiro de acarajé”, confirma Ide Macário, irmã de Valdir. Aldenice, Aldisia, Aldair, Avanivalda e Aldacir, irmãs de Valdir, abriram salão com homenagem a ele (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Muitos clientes, lembra André, sequer pagavam. “Vamos dizer que ele cortava cem cabelos no dia. Daqueles, só metade pagava”, conta.

Para montar o primeiro salão, em uma salinha alugada, Valdir e os amigos cataram materiais que tinham sido jogados fora. “Arrumamos uma cadeira velha. O cliente sentava e tinha que ficar segurando a cadeira”, lembra André, que se tornou o comprador oficial de lâminas e anotava os nomes dos clientes.“Nesse primeiro salão, só cabia ele e o cliente lá dentro. Mas cinco horas da manhã já tinha cliente na porta fazendo fila. Isso todos os dias”, recorda.O salão sequer tinha máquina de cortar cabelo. Valdir então rifou um relógio. “Lembra daquele Champion com sete pulseiras? Pois é. Ele botou o mesmo relógio na rifa sete vezes. Aí compramos a máquina”. Gradativamente, as coisas foram acontecendo. E Valdir se tornou o cabeleireiro nome mais conhecido na área de cabelos afros em Salvador.  

A inspiração inicial veio da mãe, Alda Macário. Valdir contava que, quando pequeno, via a mãe desembaraçar e trançar os cabelos crespos das cinco irmãs mais velhas. Naquela observação, encontrou seu talento. “Minha mãe era espichadeira de cabelo. Ia nas casas fazer os cabelos dos vizinhos”, conta Ide Macário.

Na porta de vidro do salão, a homenagem à mãe: “Este salão é em homenagem a Alda Macário”. Como descreve a própria página do salão na Internet, uma mulher mãe de oito filhos que o mostrou a "importância de se alcançar a independência financeira, o poder, a união e a solidariedade conservando a dignidade e a simplicidade".