Antonio Risério: Breve leitura de um legado e a evolução da cidade

A difícil missão de mudar o rumo de Salvador, quando ela estava de costas pra seu passado e de olhos fechados pro futuro

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  • Da Redação

Publicado em 15 de janeiro de 2019 às 01:59

- Atualizado há um ano

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É hoje célebre a mensagem enviada por Jorge Amado a Antonio Carlos Magalhães, então prefeito de Salvador. Jorge vinha de uma longa estada na Europa e tomou um susto quando viu o que Antonio Carlos estava fazendo na (e com) a cidade. Ficou encantado. E, sem renegar a sua formação comunista, não hesitou em parabenizar o prefeito: “Sou seu adversário político, mas não sou cego”. Anos depois, ainda comentaria: “Há uma cidade de Salvador de antes da administração de Antonio Carlos, outra de depois”.

Difícil discordar. O que nós tínhamos, antes de Antonio Carlos assumir a prefeitura, era uma cidade algo perdida, quase uma anciã de mão trêmula. Uma cidade que voltara as costas ao seu passado e não abrira os olhos para o futuro. Antonio Carlos resolveu encarar as duas coisas. Fazendo o que foi possível, enquanto prefeito, e levando adiante a obra, já como governador. Para dizer em poucas palavras, Antonio Carlos rompeu com a timidez secular dos governantes locais diante do espaço urbano.

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Analistas de esquerda costumam usar um clichê algo nonsense, quando falam do trabalho de gente como Edgard Santos e Antonio Carlos: “Modernização conservadora”. Seria supostamente a promoção da modernização técnica sem um correspondente avanço social. Curiosamente, quando a esquerda baiana chega ao poder e aí se incrusta (de 2006 até hoje), copia Antonio Carlos apenas parcialmente: assimila e põe em prática a “gramática política” do carlismo, como costuma dizer o cientista político Paulo Fábio, mas nada moderniza – e, paradoxalmente, leva a Bahia a se converter num escândalo social. Ao longo desses últimos anos, quando o Brasil deu alguma melhorada, a Bahia não acompanhou seu ritmo. E quando o Brasil foi mal, a Bahia foi pior. Vejam os números do PIB. Avenida Luis Viana, a Paralela, em 1988 (Foto: Luis Hermano/Arquivo CORREIO) Mas voltemos ao nosso tema. Falei das duas vertentes da ação de Antonio Carlos na administração pública: um pé no passado, um pé no presente. Ou melhor: foco na memória coletiva, foco em rumos futuros. No primeiro caso, com a atenção voltada para o nosso “centro histórico”, que o governador J. J. Seabra pretendeu demolir, chegando mesmo a derrubar a velha Sé da Bahia."O que nós tínhamos, antes, era uma cidade algo perdida, quase uma anciã de mão trêmula". Antônio Risério.Em plano urbanístico, Antonio Carlos reviu e acionou o projeto das “avenidas de vale”, que vinha do Epucs (Escritório do Plano de Urbanismo de Salvador)  e de Mário Leal Ferreira. Mas com uma diferença fundamental. No projeto original, as “cintas de cumeada” traçadas por Mário Leal detonariam, entre outros espaços, o Santo Antônio e o Pelourinho. Antonio Carlos não topou. Sua aposta foi mesmo nos vales, que bem depois receberiam belas passarelas, interligando comunidades plantadas nos cimos dos morros. Pelourinho, 1993, ACM visita obras do Centro Histórico (Foto: Arquivo Correio) Mais tarde, com a abertura da Paralela e a construção do Centro Administrativo, Antonio Carlos providenciaria uma saída metropolitana para a cidade. Obra que teria sua contraparte no horizonte memorial, com a recuperação do Pelourinho.

Como Edgard, Antonio Carlos soube se cercar de quem entendia do riscado. Não nos esqueçamos de que, para a concepção do projeto do Centro Administrativo (onde um governador petista, num atestado de grossura, destruiu o gramado para fazer um curral onde estaciona seu helicóptero), ele chamou Lúcio Costa, o criador de Brasília. E que, enfrentando diversos empreiteiros locais ávidos por superfaturamentos, designou (e manteve) João Filgueiras Lima como o arquiteto de nossas grandes obras públicas. CAB, 1980: construção do Centro Administrativo da Bahia (Foto: Arquivo Correio) Em comparação, o que temos hoje não merece aplausos. Coisas como a implantação de um apartheid social, com o trem suburbano (vulgo “metrô”) na Paralela. A transformação do Iguatemi num inferno de concreto. O privilégio dado a viadutos para automóveis e não a espaços para as pessoas. A ação destrutiva que faz desta cidade, antes tão rica em águas, um lugar cada vez mais árido. O desprezo ignorante pela dimensão estética da cidade, essencial para o bem-estar de seus moradores.

Me sinto assim na obrigação de repetir Jorge Amado: fui adversário político de Antonio Carlos, mas não sou cego. E, quando vejo a mediocridade tomando conta de tudo, só tenho a confessar que sinto saudades da sua competência técnica, da sua capacidade de formar equipes primorosas, da sua sensibilidade cultural. Pois o que vejo hoje, para lembrar o verso de Drummond, é barro sem esperança de escultura. Tudo a pedir pela retomada da ousadia amorosa e criativa com que Antonio Carlos tratou esta cidade.

Antonio Risério é escritor, antropólogo, ensaísta e historiador. Autor de livros como ‘Uma História da Cidade da Bahia’ e ‘Avant-Garde na Bahia’