É hoje célebre a mensagem enviada por Jorge Amado a Antonio Carlos Magalhães, então prefeito de Salvador. Jorge vinha de uma longa estada na Europa e tomou um susto quando viu o que Antonio Carlos estava fazendo na (e com) a cidade. Ficou encantado. E, sem renegar a sua formação comunista, não hesitou em parabenizar o prefeito: “Sou seu adversário político, mas não sou cego”. Anos depois, ainda comentaria: “Há uma cidade de Salvador de antes da administração de Antonio Carlos, outra de depois”.
Difícil discordar. O que nós tínhamos, antes de Antonio Carlos assumir a prefeitura, era uma cidade algo perdida, quase uma anciã de mão trêmula. Uma cidade que voltara as costas ao seu passado e não abrira os olhos para o futuro. Antonio Carlos resolveu encarar as duas coisas. Fazendo o que foi possível, enquanto prefeito, e levando adiante a obra, já como governador. Para dizer em poucas palavras, Antonio Carlos rompeu com a timidez secular dos governantes locais diante do espaço urbano.
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Analistas de esquerda costumam usar um clichê algo nonsense, quando falam do trabalho de gente como Edgard Santos e Antonio Carlos: “Modernização conservadora”. Seria supostamente a promoção da modernização técnica sem um correspondente avanço social. Curiosamente, quando a esquerda baiana chega ao poder e aí se incrusta (de 2006 até hoje), copia Antonio Carlos apenas parcialmente: assimila e põe em prática a “gramática política” do carlismo, como costuma dizer o cientista político Paulo Fábio, mas nada moderniza – e, paradoxalmente, leva a Bahia a se converter num escândalo social. Ao longo desses últimos anos, quando o Brasil deu alguma melhorada, a Bahia não acompanhou seu ritmo. E quando o Brasil foi mal, a Bahia foi pior. Vejam os números do PIB.
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Avenida Luis Viana, a Paralela, em 1988 (Foto: Luis Hermano/Arquivo CORREIO) |
Mas voltemos ao nosso tema. Falei das duas vertentes da ação de Antonio Carlos na administração pública: um pé no passado, um pé no presente. Ou melhor: foco na memória coletiva, foco em rumos futuros. No primeiro caso, com a atenção voltada para o nosso “centro histórico”, que o governador J. J. Seabra pretendeu demolir, chegando mesmo a derrubar a velha Sé da Bahia.
"O que nós tínhamos, antes, era uma cidade algo perdida, quase uma anciã de mão trêmula". Antônio Risério.
Em plano urbanístico, Antonio Carlos reviu e acionou o projeto das “avenidas de vale”, que vinha do Epucs (Escritório do Plano de Urbanismo de Salvador) e de Mário Leal Ferreira. Mas com uma diferença fundamental. No projeto original, as “cintas de cumeada” traçadas por Mário Leal detonariam, entre outros espaços, o Santo Antônio e o Pelourinho. Antonio Carlos não topou. Sua aposta foi mesmo nos vales, que bem depois receberiam belas passarelas, interligando comunidades plantadas nos cimos dos morros.
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Pelourinho, 1993, ACM visita obras do Centro Histórico (Foto: Arquivo Correio) |
Mais tarde, com a abertura da Paralela e a construção do Centro Administrativo, Antonio Carlos providenciaria uma saída metropolitana para a cidade. Obra que teria sua contraparte no horizonte memorial, com a recuperação do Pelourinho.
Como Edgard, Antonio Carlos soube se cercar de quem entendia do riscado. Não nos esqueçamos de que, para a concepção do projeto do Centro Administrativo (onde um governador petista, num atestado de grossura, destruiu o gramado para fazer um curral onde estaciona seu helicóptero), ele chamou Lúcio Costa, o criador de Brasília. E que, enfrentando diversos empreiteiros locais ávidos por superfaturamentos, designou (e manteve) João Filgueiras Lima como o arquiteto de nossas grandes obras públicas.
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CAB, 1980: construção do Centro Administrativo da Bahia (Foto: Arquivo Correio) |
Em comparação, o que temos hoje não merece aplausos. Coisas como a implantação de um apartheid social, com o trem suburbano (vulgo “metrô”) na Paralela. A transformação do Iguatemi num inferno de concreto. O privilégio dado a viadutos para automóveis e não a espaços para as pessoas. A ação destrutiva que faz desta cidade, antes tão rica em águas, um lugar cada vez mais árido. O desprezo ignorante pela dimensão estética da cidade, essencial para o bem-estar de seus moradores.
Me sinto assim na obrigação de repetir Jorge Amado: fui adversário político de Antonio Carlos, mas não sou cego. E, quando vejo a mediocridade tomando conta de tudo, só tenho a confessar que sinto saudades da sua competência técnica, da sua capacidade de formar equipes primorosas, da sua sensibilidade cultural. Pois o que vejo hoje, para lembrar o verso de Drummond, é barro sem esperança de escultura. Tudo a pedir pela retomada da ousadia amorosa e criativa com que Antonio Carlos tratou esta cidade.
Antonio Risério é escritor, antropólogo, ensaísta e historiador. Autor de livros como ‘Uma História da Cidade da Bahia’ e ‘Avant-Garde na Bahia’