Ao mestre Carlos Moore, com amor

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  • Nelson Maca

Publicado em 20 de novembro de 2018 às 05:05

- Atualizado há um ano

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  Convivo intensamente com o Mestre Carlos Moore há uns 15 anos. Puxa, um dos nomes mais respeitados da luta contra o racismo no mundo morando aqui, ao lado, meu vizinho de não mais de uma esquina e duzentos metros. Sempre, humildemente, pedindo para eu não chamá-lo de mestre nem de professor. Apenas de irmão. Brother, ele gosta muito. Pude ler e indagá-lo sobre alguns títulos de sua biblioteca, a exemplo de FELA: This Bitche of Life. Muito bem antes de sua publicação brasileira. Aliás, sou responsável pelo estabelecimento do texto final de FELA: Essa Vida Puta. E também li e reli, para colaborar na fluência da tradução nacional de Pichón, primeiro dos três e definitivos volumes de suas memórias políticas. No livro, tive a honra de dividir essa função com nossa saudosa Luiza Bairros.

Foram muitos artigos e palestras lidos juntos. Ele sempre pedindo para que eu o ajudasse no estabelecimento do Português brasileiro. Sempre no afã de ser compreendido. Um dos elogios que mais me envaideceram na vida vieram desses encontros produtivos. Uma vez, preparando uma conferência para o lançamento do projeto de universidade negra do Instituto Cultural Steve Biko, discordei de uma sua proposição. Ele pediu para que eu fosse, imediatamente, até sua casa. Acendeu um charuto, encheu uma taça de vinho e me disse: “Se tu não entendes o que digo, hay problema! Senta aí, vou te explicar o que quero dizer. E você me ajuda a ser compreendido lá (na conferência)”. Até hoje penso naquela tarde. A maior lição de interlocução propositiva que já tive.

Entretanto, apesar de ser seu fiel secretário em tantas falas e escritas, tenho a honra de tê-lo como apreciador de minha poesia e plateia empolgada de minhas performances. Felizmente, gostando e com palavras de incentivo. Ganhei dele o prefácio do Gramática da Ira. Ele leu meticulosamente cada poema e escreveu um daqueles prefácios-prefácio. E foi tão fundo na leitura crítica que me fez acrescentar ao volume Bom dia, FELA. Foi incrível. Quando li, pela primeira vez, o texto, percebi que ele citava trechos e analisava o poema Bom dia, FELA, como se constasse na coletânea. Eu estranhei e disse: “Mas, Carlos, esse poema não está no livro.” Muito calmamente, ele disse: “Eu sei!” E continuou: “É fácil resolver isso, Nelson. Você o coloca no livro. Ou não utiliza o prefácio”.

Coloquei o poema aos originais e utilizei o prefácio! Vinha com a dedicatória “Para meu Mestre Carlos Moore”. Eis que, muito seriamente, me disse: “Nelson, por favor, tira isso. Não dedique a mim. FELA é do mundo. Você deve colocar assim: “Para todos os FELAS do mundo!”. Assim coloquei, assim está.

Certa vez, referindo-se ao grande número de lideranças do movimento de descolonização do continente africano que foram assassinadas ou morreram em circunstâncias trágicas, Carlos Moore me demonstrou, categoricamente, como se formam os grandes seres revolucionários, que são pessoas profundas, coletivas e incorruptíveis. Disse que cada homem daquele somava anos e anos de formação e de experiência de luta. Quando se mata um grande líder, uma geração inteira pode ser decapitada. Por isso, tenho pensado muito nele, nesses dias de profunda reflexão em torno do assassinato do Mestre Moa do Katendê. Por isso, corro logo para abraçar e não largar mais do pé do meu Mestre Jorjão Bafafé, que está vivíssimo, criativo, produtivo e atuante.

Por isso, ao ser convidado a ocupar esse espaço de voz, resolvi falar de meu Grande Mestre Carlos Moore. Queria falar um pouco de minha convivência com ele e lembrar dois dos inúmeros poemas que escrevi inspirado nessa convivência e que formam meu livro inédito Pan-África. Um deles, Bom dia, FELA, como já falei, já está publicado. Os outro, Rugido, trago como forma de contribuir na sondagem das significações do 20 de novembro, dia de Zumbi, Dia Nacional da Consciência Negra. Sempre agradecido a Exu por encruzilhar a linha da minha vida a desses Grandes Mestres, e feliz por poder dizer aqui: Carlos Moore, meu Pai, eu te amo!

Rugido Para Carlos Moore Wedderburn

Não há Renascimento em nossa Terra Há a inevitável inserção do corpo e da alma No confronto à hecatombe a mim desvendada por você Ponte visível entre as margens invisíveis Denúncia do método nefasto do grande mito continental   Desnuda-se o alçamento do castelo de nossas mais novas ilusões Revestimento do contra piso da catástrofe já sedimentada Nova face da velha história que sempre ajudamos a construir   Você promove o desmanche do nosso edifício colonial Passo a passo, peça a peça, pessoa a pessoa Só mesmo você desnuda diante de meus olhos incrédulos esta nova miragem O seguimento da farsa que me vi envolvido Os descaminhos dos que ficam Os desvios na dispersão O frio sangramento dos filhos fiéis A última queda da Mãe   Rugido de rara clareza e incrível tensão Anúncio bélico A descoberta da face sombria do movimento sem condução A ira arrancada da gramática que rompe Voz dissidente que estilhaça a máscara “revolucionária” da nova opressão

Dissolve seu simbolismo sagaz A ardilosa apropriação, o furto, a diluição hipócrita A lama oportunista A mancha que se estende A nódoa sobre os mais salutares tecidos afro-revolucionários

Sua timbragem de rara exceção é o alicerce que não se elastece O vigor que não se dobra O pacto profundo da consciência Pan-Africana

Os pilares paradigmáticos de Kwame Nkrumah Metonímia que bem representa a fidelidade de sua abnegação A gratidão com que você coloca o peito aberto ante a ilusão que nos guia Ante os predadores de fora e de dentro da nossa gente preta   Tendo limpado minha consciência perdida de ignorar tantas cruezas A têmpora dos que não têm acesso à restrita casa grande das informações Não mais imito o trânsito inconseqüente nas esferas do poder estranho a nós   Obrigado por germinar minha cabeça finalmente Com a semente que se faz brotar do entendimento definitivo Da nascença das razões reais do continente Da nova estampagem de meu semblante agora coberto de cumplicidade   Quando você se inscreve de corpo e alma na luta Quando você escreve seu sempre ponto seguimento Na sequência visceral das indagações Na proposição do comportamento do homem íntegro Na indubitável concretude do relato da história Na experiência imediata do abandono da dor da miséria da morte Na dedução catastrófica para o passado e o futuro Na blindagem ao que se é dito quando se está sentindo Não na única versão dos fatos Senão no fundamento da sinceridade

Na coragem que nos interessa Na verdade que pode nos apontar caminhos

Nelson Maca é professor, escritor, produtor cultural e poeta.