Apagão estatístico: suspensão do censo 2021 deixa país sem condições de planejar

Censo demográfico é feito no Brasil desde 1872; com os dados, país, estados e municípios planejam políticas públicas, orçamento e verbas para saúde, educação, saneamento básico e até planos de vacinação

Publicado em 2 de maio de 2021 às 10:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Acervo IBGE

Se não fosse o Censo 2010, ainda viveríamos sob dois mitos soteropolitanos: o primeiro, de que Cajazeiras tem 600 mil habitantes; o segundo, de que a Liberdade é o bairro mais negro de Salvador.

“O mito da Liberdade foi derrubado por Pernambués, que tem uma população maior. E a questão de Cajazeiras é complexa, mas por mais boa vontade que a gente tenha, Cajazeiras não passa de 150 mil habitantes. As pessoas ficam decepcionadas”, brinca o geógrafo Clímaco Dias, doutor e professor da Universidade Federal da Bahia.

Os dois exemplos servem para trazer mais para perto um problema bastante sério: o apagão estatístico provocado pela ausência de um censo demográfico. Desde 1872, ainda no Império, o Brasil faz censos a cada dez anos, com poucas interrupções - o último cancelamento total foi em 1930. Mas, o recenseamento mais recente no país, de 2010, já completou 11 anos. E o censo de 2020, adiado para 2021, agora foi suspenso após um corte de recursos que deixaria o orçamento em R$ 70 milhões. A previsão do IBGE era de R$ 3,4 bilhões.“Sem o censo, a gente vai viver um mito. Um país que não tem um censo regular não tem como planejar absolutamente nada. O censo é o retrato mais próximo que a gente tem do real. É impensável um país ficar sem um censo demográfico”, defende Dias.Não é só contar pessoas. Segundo o IBGE, o censo tem quatro pilares fundamentais. O primeiro é o repasse de recursos para estados e municípios, que depende do cálculo de estimativas de população - já desatualizado.

Os dados que balizam a elaboração e calibragem de políticas e investimentos públicos também dependem do censo. Agora, em plena pandemia de covid-19, o censo seria fundamental para a política de vacinação, por exemplo.“Nós estamos no meio de uma pandemia e na necessidade de estimar quantos são os cidadãos em cada faixa etária. Quando a gente desconhece isso, a gente planeja mal. Ou subestimamos, ou superestimamos a quantidade de vacinas. Com o censo, o IBGE daria ainda este ano uma estimativa para que as prefeituras pudessem se planejar”, afirma Joilson Rodrigues, funcionário aposentado do IBGE na Bahia e que respondeu pela coordenação técnica do último censo.Essas informações de população servem também para que as prefeituras conheçam as condições de moradia, saneamento básico, educação, trabalho e renda. “Qual o tamanho das nossas casas? Como está a questão do saneamento, água, esgoto? Isso é fundamental para que a gente possa entender a expectativa de vida, que a gente já sabe que caiu com a covid”, afirma o geógrafo.

Os dados ainda norteiam investimentos públicos e servem para atualizar as pesquisas de amostra de domicílios. Além disso, há informações sobre a população que somente o censo investiga, como indígenas, religião, migração e deficiências. Em 2021, seria a primeira vez que o censo investigaria quilombolas e autismo na população.

No final de março, após o anúncio do corte no orçamento do Censo 2021, a então presidente do IBGE, Susana Cordeiro Guerra, e o diretor de Pesquisas, Eduardo Rios-Neto, publicaram uma carta em defesa do censo:“Sem o Censo em 2021, as ações governamentais pós-pandemia serão fragilizadas pela ausência das informações que alicerçam as políticas públicas”, diz um trecho da carta.Oito ex-presidentes do IBGE também divulgaram uma carta em defesa do orçamento para o Censo. No último dia 28, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), atendeu a um pedido do governo do Maranhão e mandou que o governo federal faça o censo de 2021. Ainda cabe recurso por parte da Advocacia Geral da União (AGU) à decisão, que será submetida ao plenário do STF no dia 7 de maio.

Curiosidades sobre o censo na Bahia e no Brasil

1. Quarta vez que um censo não acontece O primeiro censo foi feito no Brasil em 1872, ainda no Império. Desde então, o censo deixou de acontecer outras três vezes: em 1880, em 1910, em 1930 - em todos os casos, antes da criação do IBGE, que fez o primeiro censo em 1940. De lá para cá, o recenseamento de 1990 foi adiado para 1991. Agora, o de 2020 foi adiado para 2021. E o de 2021, mais uma vez suspenso.

2. Salvador na frente Em 1936 foi instalado o Instituto Nacional de Estatística (INE), futuro IBGE. Dois anos depois, foi inaugurada em Salvador a primeira Delegacia Geral do INE. Essa delegacia foi a responsável por prestar assistência técnica a todas as repartições regionais do 'norte' do Brasil. Inspetoria Regional da Bahia, inaugurada em 1938 como Delegacia Geral do INE, para prestar apoio técnico ao Norte do Brasil (Foto: Acervo IBGE) 3. Teixeira de Freitas O baiano Mário Augusto Teixeira de Freitas foi o primeiro-secretário geral do IBGE, inaugurado oficialmente em 1939. Ele já tinha atuado nas diretorias de estatística. A partir de 1942, quando foram criadas as Agências Municipais de Estatística, havia fotos dele nas paredes dos imóveis. Algumas salas levavam seu nome. Agência de Itapicuru, na Bahia, com fotografia de Mário Augusto Teixeira de Freitas, em 1958 (Foto: Acervo IBGE) 4. Barreiras A cidade de Barreiras, no Oeste da Bahia, está entre aquelas que teve sua agência municipal criada logo no primeiro ano, em 1942. Neste mesmo ano foi criada uma cota de estatística, um impost cobrado sobre as diversões públicas para financiar a coleta dos dados estatísticos municipais. Agência Municipal de Estatística de Barreiras, inaugurada em 1942 (Foto: Acervo IBGE) 5. 16,9 mil equipamentos No último censo, de 2010, cerca de 19 mil pessoas estiveram envolvidas na operação na Bahia. Em tempos normais, o quadro do IBGE no estado era de 600 pessoas (entre permanentes e temporários). Foram usados mais de 16,9 mil equipamentos de coleta de informações na Bahia, em mais de 500 pontos de coleta.

6. 10% do Brasil Segundo o IBGE, o orçamento do Censo 2010 foi calculado em R$ 1,677 bilhão. A Bahia costuma responder por cerca de 10% disso - tanto em relação ao custo real quanto em relação ao número de pessoas envolvidas, mas esse é um número bastante dinâmico.

7. Caso Maetinga Entre os Censos de 2000 e 2010, os dados mostraram um movimento de redução da população na cidade de Maetinga, considerada o menor município da Bahia. Desde então, as projeções de população feitas para a cidade são decrescentes. Apesar disso, o número de eleitores da cidade é o triplo da população estimada. Sem o censo de 2021, não será possível dizer se a população da cidade de fato diminuiu ou se aumentou, e ela pode seguir recebendo menos recursos federais do que deveria. Maetinga, menor município da Bahia (Foto: Reprodução) 8. Recusa em receber recenseadores Ao longo dos anos, o IBGE fez campanhas para incentivar as pessoas a receberem os recenseadores. Mas, em alguns casos, quando um município estava em vias de ter uma mudança de fronteira, por exemplo, a população se recusava a participar do censo, temendo que fossem registrados como habitantes de uma cidade com a qual já não se identificavam. Em 2010, isso aconteceu em diversas cidade do Brasil. Na Bahia, na região de Lençóis, equipes do IBGE precisaram fazer reuniões com prefeitos de Nova Redenção e Andaraí para convencer as pessoas a responderem à pesquisa. Eles explicaram que, após as mudança de fronteiras, as pessoas seriam 'encaixadas' de acordo com a divisão das novas cidades, o que de fato aconteceu.

9. Estimativas O IBGE tem dados estimativos da população do Brasil desde 1550. Naquele ano, se estimava que a população aqui era de 15 mil habitantes.

10. Milton Santos O geógrafo baiano dá nome, desde 2010, ao Atlas Nacional do Brasil. Essa era uma determinação de uma lei de 2005. O Atlas é disponibilizado anualmente em versão digital com edições anuais, mas a última atualização é de 2019.

Veja a linha do tempo do censo demográfico no Brasil. As informações são do IBGE Memória: