Armas e violência

Por Mariana Possas

  • D
  • Da Redação

Publicado em 17 de janeiro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Qual o resultado esperado do estímulo ao porte, à posse e, portanto, ao uso de armas? O aumento certo da violência letal. Mais armas, mais mortes, diz o raciocínio lógico. Mas o objetivo de um estímulo como esse não seria justamente aumentar a segurança? Pois é, temos uma contradição aqui. Estamos diante de um discurso que promete segurança à sociedade gerando (ainda) mais mortes. Os já altíssimos índices de homicídio não devem ter um aumento expressivo imediatamente. Mas é essa a tendência, a não ser que grandes mudanças socioculturais aconteçam em curto espaço de tempo, o que não é nada provável.

Existem muitas razões pelas quais o aumento da circulação de armas, em determinados países, gera aumento da violência letal. No Brasil, há vários aspectos que podem ser levantados, mas vou me focar em um específico: o problema do nosso estado de direito (rule of law). Aqui, o direito não rege todos os conflitos. A prova disso são nossos mais de 60 mil homicídios por ano. Desde os anos 1980, os números de homicídios no Brasil crescem constantemente, indicando que a morte é uma maneira possível de dissolver conflitos no nosso país. Por volta de 70% dessas mortes são causadas por disparo de arma de fogo.

A morte que dissolve conflitos, sejam eles pessoais, profissionais, de fundo econômico ou sentimental, ou entre facções criminosas é uma execução e, portanto, do ponto de vista criminal, um homicídio. No entanto, isso não significa que a Justiça Criminal vai processar esses casos enquanto tal. Sabemos que no Brasil são pouquíssimos os casos de homicídios que são solucionados, ou seja, casos com autoria comprovada. Consequentemente, são poucos os que chegam na Justiça e que chegam a uma sentença final. Desses, uma parcela significativa será provavelmente absolvida. Refiro-me aos casos de agentes de segurança (normalmente policiais militares) que executam pessoas, em serviço ou fora dele, sob a alegação de “resistência”.

Nessa nossa realidade da morte como prática social recorrente, forma-se uma linha muito tênue a separar a legalidade da ilegalidade, vale dizer, a própria compreensão do que é legal ou ilegal perde facilmente a referência objetiva. Em tal processo de “legalização do ilegal”, a morte passa a valer em determinados contextos com os quais nos familiarizamos, mas na verdade mal conhecemos empiricamente: os conflitos no campo e nas periferias das grandes cidades que conhecemos do noticiário, enquadrados numa narrativa pré-fabricada.

De todo modo, pode o aumento das mortes por armas de fogo, usadas em legítima defesa ou não, gerar algum tipo de segurança mensurável de alguma forma, ou apenas contribuiria para a sensação dela? A ciência, por meio dos vários estudos empíricos nacionais e internacionais, vai dizer que não há evidências de que o uso de armas pela população melhore o problema concreto da violência e do crime. A sensação de (in)segurança, por sua vez, fenômeno bem descrito pela literatura criminológica, pode levar a descrições fictícias da realidade e, assim, criar condições para decisões com “efeitos paradoxais” como justamente esse caso de estímulo ao uso da arma de fogo para gerar mais segurança

Mariana Possas é coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade (Lassos), da Universidade Federal da Bahia (Ufba).