Arte no buzu: baianos transformam ônibus em palco itinerante

Conheça histórias de quem dá um toque de alegria à rotina de muita gente

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  • Laura Fernades

Publicado em 19 de janeiro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arisson Marinho e Divulgação

“Isso é um assalto... Da atenção de vocês!”. Quem anda de ônibus já deve ter escutado essa e outras frases que anunciam, com bom humor, a  chegada de artistas no transporte coletivo. “Atrapalhar o silêncio da viagem” faz parte da performance de atores, músicos e poetas que arriscam quebrar a tensão do dia a dia com pequenas apresentações nesse palco itinerante.

Há quem prefira chegar de mansinho, sem chamar a atenção. Caso do artista visual Oliver Dorea, 30 anos, que paga a passagem e tranquilamente escolhe onde vai sentar para registrar um dos seus desenhos. Conhecido por pintar impactantes figuras inspiradas na cultura afro-brasileira, Oliver deixa sua marca na traseira dos bancos de ônibus que circulam pelas mais diversas linhas de Salvador. O cineasta Stan Lee (1922-2018) e o Mestre Moa do Katendê (1954-2018) estão entre os homenageados de Oliver Dorea (Foto: DIvulgação) De início, vêm os olhares curiosos e repressores. “Eu ia brigar com ele porque achei que estivesse pichando um patrimônio que é nosso”, confessa a estudante de Administração Idaiane Serra, 31, enquanto observa Oliver em ação com suas canetas coloridas. Depois de ver o conteúdo do desenho e saber que o rapaz estava autorizado a ilustrar aquele espaço, Idaiane amoleceu o coração.

“Fiquei impressionada! Se com o ônibus em movimento sai essa perfeição, imagine parado. Foi uma boa surpresa”, aprovou a estudante que está acostumada a frequentar museus, mas não a ver o coletivo como uma tela em movimento. “É mais acessível para todos, né? Não tem quem passe e não olhe uma coisa linda dessa”, elogia.

Além de Idaiane, Oliver já enfrentou outros olhares repressores, principalmente no dia que começou a desenhar, durante um engarrafamento. Sem papel e inquieto, já que tem Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, diagnosticado na infância, Oliver fez a imagem na parte de trás do banco. “Está repreendido”, disse um grupo de evangélicas que não aprovou de imediato. Mas as críticas deram lugar a elogios à medida que o desenho tomou forma. “Deus te abençoe. Que lindo!”, escutou, enquanto uns batiam palmas. O artista Oliver Dorea cria seus desenhos nos bancos dos ônibus (Foto: Arisson Marinho) Cega Mas o encontro que realmente marcou sua trajetória nesses últimos dois anos de pintura nos coletivos foi quando uma senhora cega o abordou. “Ela perguntou: ‘Tu é o menino que desenha no ônibus? Oliver, né? Ouvi sua reportagem no Conexão Bahia’”, lembra o artista, citando o programa da Globo/TV Bahia que fez uma matéria sobre sua obra itinerante.

Oliver conta que demorou um tempo até perceber que a senhora não enxergava, principalmente quando ela pediu: “Posso ver?”. “Aí o marido colocou a mão dela sobre o desenho para sentir o relevo. Fiquei sem reação”, lembra, emocionado. Filho do cantor Tatau, ex-Araketu, Oliver foi convidado a narrar o que tinha desenhado: uma de suas imagens que exaltam a cultura negra.“Sempre tive esse imaginário relacionado às questões afro-brasileiras, estética onde me vejo. Isso toca as pessoas porque elas são parte dessa representação. A maioria que pega ônibus é negra. Minha arte é aceita por isso”, reflete o artista que defende a “arte em toda parte”.Por isso, além dos ônibus, desenha em postes, muros e cadeiras, o que rendeu um convite para fazer uma exposição de cadeiras na Escola de Belas Artes da Ufba, onde estuda.

Atento à produção acadêmica, Oliver  critica a questão “academicista que foge do popular” e destaca a importância do acesso livre. “As pessoas não vão para os museus porque acham que aquilo é para quem tem dinheiro. No ônibus, isso é quebrado”, comemora, sobre o transporte coletivo que reúne trabalhadores, desempregados, estudantes e todo tipo de gente que acaba sendo inspirada por esses artistas. Inspirado em Seu Arcanjo Sanfoneiro, o músico Lael Poca Zói interpreta clássicos da música brasileira e nordestina (Foto: Divulgação) Lúdico Foi observando Seu Arcanjo Sanfoneiro, que há mais de 30 anos se apresenta nos coletivos, que o músico Lael Poca Zói, 44, decidiu seguir o mesmo rumo. Desempregado, Poca Zói viu ali uma oportunidade. Autodidata no instrumento havaiano ukulele, ele interpreta clássicos de Luiz Gonzaga (1912-1989), Dominguinhos (1941-2013) e outros mestres da música brasileira.

“Além de cantar, sempre trago uma mensagem de esperança para as pessoas. Isso faz diferença no dia a dia”, garante o músico que circula por linhas da Avenida Paralela, Bonocô, Lapa e Pituba.“As pessoas estão precisando do lúdico. Elas são como plantas murchinhas: quando você joga água, ficam fortes de novo”, sorri Poca Zói.A estudante Isabela Almeida, 27, concorda, afinal sua poesia com rap tem a capacidade de dar uma injeção de ânimo em quem a escuta, incluindo moradores de rua. Mana Bella, como é conhecida, lembra que dois deles a aplaudiram de pé depois que recitou um texto que abordava o racismo e o caso de Rafael Braga, ex-morador de rua preso por causa de uma garrafa de desinfetante.

“Quando terminei, eles estavam chorando. Me aplaudiram e disseram que era muito lindo o que eu estava falando, porque o tempo todo eles são invisibilizados. Então, pegaram os 15 centavos que tinham e me deram. Me disseram que se fossem empresários, patrocinavam meu CD”, conta Mana, sorridente. “Através das palavras, as pessoas veem que não estão sozinhas”, garante.  Mana Bella mistura poesia e rap para abordar temas como feminicídio, segregação racial, especulação imobiliária e drogas (Foto: Divulgação) Prazer É também por esse caminho que o Coletivo Teatral de Curtas Cenas no Buzu trafega. Com pequenas esquetes de três a cinco minutos, o grupo aborda temas como a arte de rua e a violência contra as mulheres nos ônibus. A partir da técnica do teatro invisível, o grupo entra nos ônibus silenciosamente e provoca os passageiros com textos reflexivos. Mas a densidade do texto é acompanhada pela leveza da peça de teatro.

“Sempre pensei sobre a necessidade da gente deixar uma mensagem que reporte a um lugar de prazer. A gente já vive uma vida exaustiva do trabalho pra casa e não tem tempo para entretenimento”, destaca o ator e educador Kadu Lima, 32, idealizador do coletivo que volta à ativa no segundo semestre com uma nova edição da mostra Curta Cena no Buzu.

A proposta é ficar perto do público que cada vez menos vai ao teatro. “O objetivo principal da arte é acessar o sentimento do outro e a arte no ônibus tira o artista do pedestal, do inacessível, e coloca realmente em contato com as pessoas. A arte só se dá quando esse encontro acontece”, convida Kadu. O Coletivo Teatral Curta Cena no Buzu volta no segundo semestre (Foto: Divulgação)