As noivas fantasmas e a essência da crônica

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Publicado em 6 de novembro de 2021 às 16:00

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A crônica é um gênero híbrido; condensa a influência de pelo menos três outros gêneros de texto: o conto, o ensaio e o relato historiográfico. Ou seja, 1) reúne narratividade, 2) expõe ou desenvolve ideias, teorias e pontos de vista, e 3) remonta acontecimentos históricos. O fato de que um autor se concentre num desses aspectos e releve outros é uma questão de escolhas ou preferências, em suma, de estilo. É o caso de Rubem Braga, um cronista-contista por excelência. O mesmo pode-se dizer de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade (em alguns livros) e Luís Fernando Veríssimo (Ed Mort, O analista de Bagé, Comédias da vida privada). Nelson Rodrigues, com seus relatos de A vida como ela é, seria talvez o suprassumo dessa tendência, se não quisermos rotulá-lo de contista.

O novo livro de Sérgio Faraco, As noivas fantasmas (L&PM, 2021), por sua vez, apresenta a confluência daquelas três tendências. Contista exímio e premiado, mas também ensaísta e livre historiador (O crepúsculo da arrogância: RMS Titanic minuto a minuto), Faraco nos oferece 46 crônicas que passeiam por alguns dos assuntos mais chocantes da história moderna, como o assassinato da família imperial russa pelos bolcheviques, e por outros bem triviais, como a comprovação de que a atriz Marlene Dietrich era supersticiosa.

Seu estilo é límpido e atraente, e nunca se volta para o próprio umbigo, mesmo quando o assunto é eminentemente pessoal. Há, de sua parte, uma intenção deliberada de atribuir ao acontecimento um valor mais amplo, universal, fazendo do mesmo um exemplo para todos nós, quer seja um fato elevado, de vitória, quer seja de vergonha, uma verdadeira trapalhada, das quais nenhum de nós escapa, mesmo na infância ou na velhice. 

Abri o livro de Faraco no domingo de manhã e, à noite, pouco antes de me recolher para dormir, já o tinha terminado. E nos sonhos algumas daquelas “histórias” me voltaram, evidência de que o livro me impactou, que me encolhi ou me dilatei com elas. O bom livro, o livro que realmente nos acrescenta algo, é aquele que nos faz subir ou descer degraus em nossa existência comum. De nada vale um livro que não nos faz recuar ou avançar. Chamo de recuar a avaliação de quem somos ou do que fizemos ao longo da vida; e de avançar, a decisão de nos ocuparmos de certas coisas daqui por diante ou adotarmos certos procedimentos. Por exemplo, a crônica que esboça um belo retrato de Erico Veríssimo e sua generosidade me fez despertar para a necessidade de ler e reler este autor, que já havia alguns anos eu deixara de lado.

O livro de Faraco é como uma manhã, que sempre nos traz novidades, faça chuva ou faça sol. Na atmosfera, nos pormenores, nas sutilezas, nos silvos dos pássaros ou simplesmente na serra elétrica da obra vizinha, toda manhã é única e não nos acorda por acaso. Obriga-nos a abrir os olhos, a nos movermos, a subirmos ou descermos degraus, a entrarmos no amanhã. Vire uma a uma as páginas de As noivas fantasmas e saberá o que estou dizendo. O testemunho de um autor deve, forçosamente, ser o testemunho de toda a humanidade. Ou então será inútil ler.

Mayrant Gallo é escritor e professor. Autor de O inédito de Kafka (CosacNaify, 2003) e Três infâncias (Casarão do Verbo, 2011)