Aventura à moda de Monteiro Lobato

Clássico Reinações de Narizinho ganha edição de luxo da Companhia das Letras; obra do autor do Sítio do Picapau Amarelo passa a ser de domínio público

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  • Doris Miranda

Publicado em 20 de abril de 2019 às 06:10

- Atualizado há um ano

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As histórias infantis criadas por Monteiro Lobato  (1882-1948) são clássicos que devem ser lidos sempre - por crianças e adultos. Não só pela originalidade imposta na literatura de quase um século atrás, mas, principalmente, pelo resgate, necessário para os dias de hoje, de uma ludicidade afetiva e originalmente brasileira que há muito perdemos - ou transformamos. Quem se criou na décadas de 1970/80, cresceu com o imaginário influenciado pela adaptação televisiva de Sítio do Picapau Amarelo, exibida diariamente na TV Globo.

É com esse mesmo espírito amoroso que a Companhia das Letras coloca nas livrarias a rica edição de Reinações de Narizinho (R$ 52/248 páginas), lindamente ilustrada por Lole. O livrão reúne os onze títulos lançados com as travessuras dos personagens mais amados de Lobato: os primos Narizinho e Pedro, os bonecos Emília e Visconde de Sabugosa, a vovó Dona Benta, a cozinheira Tia Nastácia, o porco Rabicó e os seres mágicos Saci e Cuca.

Mas, antes que o leitor lembre da saia justa que o texto original causou num mundo que hoje enxerga o racismo, o machismo e outras mazelas preconceituosas de frente, saiba que nada foi mudado. Mas  explicado em espirituosas notas de rodapé. Até porque os tempos  são outros e não cabe mesmo ouvir que Narizinho não vai à escola porque precisa aprender a cozinhar e cuidar da casa ou que Tia Nastácia era a “negra de estimação” da casa e que, por isso, chamava a patroa de “sinhá”.

Em relação a este último ponto específico, o leitor mirim precisa ficar atento que as personagens conviviam com a lembrança recente da escravidão, que havia sido abolida no Brasil há pouco mais de três décadas. Muitas pessoas que foram escravizadas continuaram morando nos mesmos lugares depois de libertas - afinal, nunca tinham saído de lá e nem vislumbravam oportunidade de independência.

Com essa compreensão, a edição de luxo, organizada por Marisa Lajolo, vem acompanhada por um texto introdutório que explica o contexto cultural da época de publicação do livro (no caso, 1920) e debate as questões polêmicas relacionadas à obra de Lobato.  O curioso é que o mesmo politicamente incorreto que irritou a contemporaneidade assustou os leitores da época. Embora fosse vista como futura dona de casa, à espera de um bom marido, a peralta Narizinho aprende ciências e discute filosofia, viaja por reinos encantados e se envolve em aventuras como guerreira. Ela e Emília têm autonomia para fazer o que desejam e costumam dispensar figuras masculinas para atividades complexas.

Atualização - “Acrescentamos notas de rodapé em que a Emília conversa com a Narizinho sobre as passagens que ela acha que podem ser difíceis de entender ou que são polêmicas. Mas é uma nota de rodapé também ficcional, que é diferente de ser uma nota de rodapé do professor. A gente faz a Emília e a Narizinho discutirem o assunto. É uma forma de atualizar o Lobato com a mesma irreverência com que faz tudo na obra dele”, conta a pesquisadora Marisa Lajolo, especialista no autor e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de  São Paulo.

Este Reinações de Narizinho, início da Biblioteca Lobato da Companhia da Letras, chega ao mercado para marcar o ano em que toda a obra do escritor paulista entra em domínio público. Isso significa que qualquer editora tem a liberdade de lançar os títulos infantis e adultos (na íntegra ou em adaptações) sem a necessidade de pagar direitos autorais.

 Segundo a legislação brasileira, direitos autorais estão protegidos por 70 anos a partir do ano subsequente à morte do autor – a de Monteiro Lobato completou 70 anos em 4 de julho de 2018.  Apesar do texto caminhar livre, as ilustrações clássicas dos livros do autor seguem reservadas.

Lajolo acredita a facilidade de publicação é boa para a obra. “Vai haver uma concorrência entre diferentes editoras e, com isso, talvez haja livros mais baratos. É acesso ao leitor. Acho que vai se ler bem mais Lobato agora”, diz. Mauricio de Souza levou a Turma da Mônica para passear no Sítio do Picapau Amarelo (foto/divulgação) Em quadrinhos - Monteiro Lobato era um sonho antigo no estúdio de Maurício de Sousa, mas que não saía do projeto até o fim do ano passado. Parte da equipe de ilustradores do quadrinista estava debruçada sobre Narizinho Arrebitado, o primeiro lançamento infantil de Lobato, que Mauricio lança agora com ‘interpretação’ da Turma da Mônica. No livro, os personagens do sítio do Picapau Amarelo assumem as feições de Mônica e companhia. O texto é uma adaptação de Regina Zilberman a partir do original.

Curioso que Mauricio teve a chance, muitos anos atrás, de ilustrar os livros do escritor que despertou nele o gosto pela leitura. O convite veio da Brasiliense, editora que queria modernizar as edições de Lobato. “Não aceitei. Mexer no que eu tinha lido e adorado, que era uma coisa sagrada para mim, seria um sacrilégio. Não tive coragem de alterar a obra de Lobato - nem que fosse com um desenho bonitinho”, relembra o pai da Mônica, hoje, com 83 anos.

A coragem veio e enfim os admiradores do dois autores podem ficar felizes com essa edição histórica que leva a turma do barro do Limoeiro para o Sítio do Picapau Amarelo. Por lá, a Mônica se vestiu de Emília, Magali virou Narizinho, Cebolinha assumiu o Pedrinho e o Louco, o Visconde de Sabugosa.  “Virão diversas versões lobatianas, vai ser uma cachoeira, cada uma à maneira de quem estiver fazendo”, promete Mauricio.

Você sabia?Brinquedos industrializados eram raridade  na época em que Emília foi criada. A maioria das meninas tinha bonecas de pano, feitas em casa. Só as meninas ricas tinham bonecas de porcelana,  importadas. Um trecho   de A Menina do Narizinho Arrebitado foi lido na primeira transmissão oficial de rádio no Brasil, em 7/9/1922, no Rio. Os Contos da Carochinha (1894) era o livro de maior  sucesso na época em que Lobato começou a escrever as incríveis aventuras de Narizinho. A primeira adaptação para a TV do Sítio foi em 1951, na TV Tupi. A série de sucesso da TV Globo estreou em 1977, transmitida em capítulo diários até 1986. A segunda versão na emissora ficou no ar entre 2001 e 2007.