Bahia e Vitória adaptam os treinos ao ciclo menstrual das atletas

Com o crescimento do futebol feminino, preparação física avança nas particularidades do corpo da mulher

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  • Daniela Leone

Publicado em 8 de março de 2020 às 05:12

- Atualizado há um ano

. Crédito: Betto Jr./CORREIO

O talento de veteranas como Marta, Formiga e Cristiane não rendeu ao Brasil um título mundial, mas fomentou o crescimento do futebol feminino no país e abriu caminho para as novas gerações. Com o empurrão da CBF e da Conmebol, que forçam clubes a manterem times femininos como pré-requisito para disputarem as principais competições masculinas organizadas por elas, a modalidade passa por um processo de amadurecimento nos principais centros de treinamentos brasileiros. Os profissionais da área estão estudando como otimizar a performance das atletas diante das particularidades do gênero, já que as flutuações hormonais durante o ciclo menstrual das mulheres afetam funções fisiológicas e psicológicas que interferem fora e dentro dos campos.

“O ciclo menstrual exige que o treinamento e a preparação física do futebol feminino sejam pensados e geridos de formas diferentes do masculino, assim como em qualquer outro esporte, porque existem variações hormonais e fisiológicas que devem ser respeitadas”, defende a médica Nathália Figueirêdo, que palestrou sobre o tema durante o 31º Congresso Brasileiro de Medicina do Exercício do Esporte, em Foz do Iguaçu (PR), no ano passado. 

Especializada em medicina esportiva e nutrição aplicada ao exercício físico, ela integra os departamentos médicos do Vitória e da seleção brasileira feminina. “A mulher tem uma dança de hormônios, principalmente estrógeno e progesterona, que têm influência em níveis de força, colágeno e resistência. Durante o ciclo, tem fases em que a mulher vai ter mais força e mais resistência física. Outras, mais fragilidades”, exemplifica.

A monitoração do ciclo menstrual tem se tornado uma das principais estratégias dos preparadores físicos para driblar incômodos, evitar lesões e melhorar o desempenho das jogadoras. O método fez parte do planejamento da seleção dos Estados Unidos para vencer a Copa do Mundo no ano passado. Por fazer o mesmo, o clube inglês Chelsea também virou assunto há algumas semanas.

Não é preciso ir tão longe; há exemplos em Salvador. De formas diferentes, os dois principais clubes do estado, Bahia e Vitória, estudam o ciclo menstrual de suas equipes e tiveram resultados positivos após implantar a metodologia. 

Preparador físico do time feminino do Bahia desde agosto do ano passado, Ítalo Trinchão desenvolveu um software para monitorar o ciclo menstrual, as oscilações e o desempenho das atletas. Antes e após o treino, todas as 25 jogadoras do elenco reportam para um banco de dados, através do celular, informações individuais a exemplo de qualidade do sono, intensidade do treino, recuperação e peso. O monitoramento por GPS também analisa as ações em treinos e jogos, como distância percorrida e aceleração. Ítalo Trinchão utiliza um software para analisar o desempenho das atletas (Daniela Leone/CORREIO) “Correlacionamos esses dados para ter um bom desempenho dentro de campo e fora. Saber o ciclo de cada atleta nos ajuda a tomar algumas decisões importantes dentro do microciclo da semana de treinos comparado ao período em que ela está”, pontua Ítalo Trinchão.

Ele conta que dificilmente uma atleta fica fora do treinamento por causa do período menstrual, mas a depender do que ela reporta e do que o banco de dados sinaliza, a carga de exercícios é reduzida e a suplementação, reforçada. 

“Quando eu cheguei no clube, a maioria delas não treinava quando estava com cólica, mas, como seria em dia de jogo? As adaptações do jogo têm que vir através do treino. Como a gente já faz todo esse processo, quando chegar no dia do jogo ela não vai sentir”, explica Trinchão.

Para a goleira Fernanda, o acompanhamento tem melhorado o desempenho dela. “Foi um ganho muito grande. Na minha época menstrual, fico muito mais lenta, mais inchada. Sou daquelas que retêm liquido, de subir 4kg na balança. Com o acompanhamento, isso não tem me prejudicado tanto”, afirma a atleta de 35 anos. 

Ela segue à risca a dieta alimentar, mas algumas companheiras de time têm dificuldade. “Sinto muita vontade de comer chocolate quando estou menstruada. E eu como”, admite a volante Milena Bispo, de 21. “Tem meses que dá pra segurar, mas outros só quero chocolate”, conta.

A nutricionista Deise Bach explica o motivo. “É comum acontecer essa vontade maior por doces. A progesterona é responsável pela retenção de líquido no período pré-menstrual, a mulher fica mais sensível, emotiva, com mais apetite. Essa sensibilidade desse período faz com que a gente acabe sentindo uma necessidade de alimentos que causem mais prazer e bem estar, que nos tragam recompensa”.

Campeão baiano em 2019, o Bahia se prepara para a disputa da Série A2, a segunda divisão do Campeonato Brasileiro – que também conta com o São Francisco entre os 36 integrantes. O tricolor estreia no dia 15, às 15h, contra a UDA, de Alagoas, em Pituaçu.  À direita, Milena Bispo conduz a bola durante treinamento na Cidade Tricolor (Felipe Oliveira/Divulgação ECBahia) Único representante do estado na primeira divisão, o Vitória está representado pela equipe sub-17 no Brasileiro, ainda não pontuou e ocupa a penúltima colocação após quatro rodadas. O próximo confronto também é no dia 15, às 15h, contra o Grêmio, em Gravataí (RS). Vice-campeão brasileiro da Série A2 em 2018, o rubro-negro reduziu os investimentos na modalidade e desmanchou o time adulto feminino após a queda do masculino para a Série B, que pôs o clube em crise financeira.

Treinos mais leves Mesmo sem auxílio de tecnologia, o preparador físico da equipe feminina do Vitória, Jeferson Queiroz, controla em uma planilha o início e o fim do período menstrual das 30 jogadoras e fica atento às sinalizações que elas fazem no dia a dia.   

“No treino em si, a mudança é na intensidade. Quando a atleta está muito indisposta, colocamos no banco, mas, quando dá, diminuímos um pouco a carga e o volume. A questão do ciclo menstrual é muito relevante. A gente faz um cálculo da carga de treino, mas muitas vezes precisa ser alterada”, afirma Queiroz.

“Também não posso expor muito porque, como tem uma diminuição de resistência, principalmente aeróbica, em uma certa fase do ciclo, eu posso expor ela a algum tipo de lesão se tentar trabalhar numa intensidade próxima de uma atleta que está num nível bom ou razoável”, completa. 

A zagueira Leslem é uma das atletas do Vitória mais afetadas pelo período menstrual. “Sinto muitas dores, cólicas fortes, desconforto. Tem vezes que eu até choro de dor. Meu rendimento cai muito. Quando estou treinando sinto um cansaço maior também”, diz a atleta de 17 anos, que na pré-temporada precisou ser substituída em um amistoso. “Estava no meu primeiro dia de menstruação e saí com 15 minutos porque não estava aguentando de dor”, conta. 

A ginecologista Márcia Novais explica pelo viés científico o que Leslem sente no corpo: “Próximo ao período menstrual, há um nível elevado de progesterona e começam a baixar os níveis estrogênicos. Isso fatalmente gera alterações de edema, sonolência, às vezes cólica, alteração de humor, que podem influenciar de maneira negativa o rendimento físico”.

Já a zagueira Aila, do Bahia, relata que a confiança dela fica abalada durante o período menstrual. “O pior pra mim é o psicológico. Se receber alguma reclamação, até das próprias atletas, fico mais cabisbaixa. Às vezes, você quer fazer e o corpo não obedece porque está um pouco mais frágil”. Ela revela já ter chorado em campo por um ex-clube e diz se sentir mais compreendida com o acompanhamento do ciclo menstrual. “Sim, muito mais. E mais respeitada também. Ele entende que não é porque não quero e sim porque estou no período”. Preparador físico do Vitória, Jeferson Queiroz atenua a carga de exercícios a depender do período do ciclo menstrual das jogadoras (Foto: Betto Jr./CORREIO) Contraceptivo ajuda no aumento de performance

A adoção de métodos contraceptivos é uma das possibilidades para a manutenção ou aumento de performance de atletas. “O mais recomendado é que a atleta não passe pelas oscilações hormonais, ou seja, que ela tenha ciclos mais constantes. Então, existe a possibilidade de usar implantes hormonais para que ela não tenha sangramentos, não passe pela fase de TPM (tensão pré-menstrual), e isso acarrete essa queda de performance”, afirma a ginecologista Márcia Novais. “Existem várias outras possibilidades, como o DIU (dispositivo intrauterino) ou a própria pílula”, completa. 

Em esportes individuais como natação e atletismo, o uso já é frequente. No futebol, modalidade coletiva e com elencos numerosos, a prática ainda não é adotada pelas equipes brasileiras. Inclusive, nem todas as atletas estão dispostas a utilizar contraceptivos. É o caso da zagueira Aila, do Bahia. “Eu não usaria anticoncepcional para ficar sem menstruar”, afirma a atleta, que tem cólica, indisposição e variação de humor no período menstrual.

Mulheres correm mais risco de lesão de ligamento no meio do ciclo menstrual

A volante Milena Bispo, do Bahia, tem apenas 21 anos, mas já viveu um momento delicado na carreira. Em 2016, quando defendia a seleção brasileira sub-20, ela rompeu o ligamento cruzado anterior do joelho direito e passou oito meses longe dos gramados.

A situação de Milena é emblemática dentro de um contexto maior que acomete as jogadoras. De acordo com a médica do Vitória e da seleção brasileira feminina de futebol, Nathália Figueirêdo, os índices de lesão de ligamento de joelho são maiores nas mulheres do que nos homens devido a uma questão fisiológica e estrutural.

“A mulher tem o quadril mais largo que o do homem, pois o corpo foi preparado para a passagem do bebê. O quadril mais largo deixa os joelhos mais aproximados e isso faz com que os ligamentos fiquem, digamos assim, mais esticados. Então, qualquer torção na mulher tende a ter uma lesão maior do que no homem. É uma diferença mecânica, de angulação”, explica.  Segundo o preparador físico do Vitória, Jeferson Queiroz, o controle do ciclo menstrual, feito na Toca do Leão a partir de 2018, reduziu o índice de lesões no elenco.

“Até 2017 existia um volume muito grande de treino e não se controlava o ciclo delas. A gente sofreu muito com lesões de ligamento. Não que a mulher precise ficar parada, mas só em diminuir a intensidade, o risco de lesão diminui bastante”, afirma o preparador físico.

De acordo com Jeferson Queiroz, em 2017, cinco atletas rubro-negras tiveram lesão de ligamento. Em 2018, esse número caiu para três jogadoras e, em 2019, dois casos foram registrados. Embora 2020 ainda não sirva como parâmetro, por estar em março, não houve lesões do tipo por enquanto.

Estudos indicam que as mulheres estão mais susceptíveis a lesões do ligamento cruzado anterior no meio do ciclo menstrual, ou seja, durante a fase ovulatória. “No meio do ciclo, fase em que o estrógeno está mais elevado, as mulheres ficam mais suceptíveis a lesões ligamentares, uma vez que este hormônio pode provocar alterações na estrutura do colágeno que compõe os ligamentos”, explica a médica Nathália Figueirêdo.