Baiano conta batalha por doador de medula: doença rara, medo da morte e cura

Ricardo Velame narra nove meses de batalha pela vida

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  • Fernanda Varela

Publicado em 25 de março de 2019 às 15:13

- Atualizado há um ano

. Crédito: Reprodução

Descobrir que precisa passar por um transplante de medula óssea não é nada fácil. Conseguir um doador compatível, é mais difícil ainda: a chance de ser 100% compatível é de 0,001% - 1 a cada 100 mil. E foi justamente essa a grande missão encarada pelo administrador de empresas Ricardo Silva Velame Santos, 28 anos, que descobriu uma doença rara em 2017.

Natural de Vitória da Conquista, no Sudoeste da Bahia, ele começou a sentir um cansaço excessivo e procurou ajuda de um médico. Foi quando descobriu que era portador de uma doença grave e rara: anemia aplásica. Segundo o hematologista Luiz Fernando Andrade, que acompanha o caso de Ricardo, a doença é grave e rara.

"É, literalmente, um esvaziamento da medula. Na maior parte dos casos, tem origem imune, onde o sistema imune da pessoa acaba destruindo as células-tronco. Com essa destruição, a medula passa a não produzir as hemácias/glóbulos vermelhos, originando anemia, os leucócitos/glóbulos brancos, originando imunidade baixa, e as plaquetas, originando sangramentos", explica.

Não foi fácil lidar com a doença. Ricardo narra o pior Natal da sua vida, os 9 meses de batalha pela vida e, enfim, a cura.Leia o depoimento dele na íntegra: Ricardo Velame narra luta pela vida (Foto: Reprodução) ***

"Eu não tenho direito de reclamar. A vida é mesmo feita de muito estresse e correria, e, às vezes, tudo passa tão corrido que a gente deixa de notar coisas importantes do nosso dia a dia. No meu caso, mais especificamente, a minha saúde. 

Era final de 2017 e, aos 27 anos, eu tinha resolvido voltar para minha cidade natal, Vitória da Conquista (BA), depois de 12 anos morando em Salvador. Obviamente, apesar de Conquista ser uma cidade de 350 mil habitantes, é inegável que a vida é muito menos estressante. E isso me deu a oportunidade de me exercitar, coisa que não fazia há muito tempo. E foi aí que eu percebi o tamanho da minha negligência. 

Poder correr na rua era algo que não fazia há muito tempo, então, resolvi voltar. Só que, logo na primeira semana, eu percebi que alguma coisa estava errada. Durante os dias, percebi que eu tinha menos fôlego. Em uma segunda eu tinha conseguido correr 3 km, aí na quinta já não passava de 1 km. Na sexta, tive que parar para descansar, pois a falta de ar era insuportável. 

Decidi procurar um médico. Achei no começo que pudesse ser algo ligado a minha sinusite, já que eu tinha uma crise ou outra. A mudança de cidade também poderia ser o problema, pensei. A médica me examinou e me disse que realmente existia um problema de sinusite, mas que não era nada grave. Ainda incomodado, resolvi procurar um cardiologista. Fiz todos os exames do coração e deu tudo normal. Ele me disse que como voltei a fazer atividade física depois de 2 ou 3 anos, era normal que eu tivesse um pouco de dificuldade no início. Depois de insistir muito para que ele me passasse um exame de sangue completo, saí de lá com minha requisição. 

Os primeiros sinais

Como o médico me disse que seria normal, eu meio que deixei de lado. Surgiu a oportunidade de viajar para a Chapada Diamantina e eu fui com uns amigos. Uma das atividades mais legais de lá, seria subir o Morro do Pai Inácio. Seria, pois o que deveria demorar 40 minutos, demorou 3 horas pra mim. Ali, eu percebi que realmente havia algo errado.Voltar a fazer exercícios físicos e sentir cansaço poderia ser normal, mas ser ultrapassado na subida por uma senhora de 70 anos, por um garoto de uns 12 e por um pai com o filho de uns 4 anos nos ombros era demais. Havia algo errado. Não consegui fazer metade dos passeios devido ao cansaço. Quando retornei, peguei aquela requisição de exame do médico e decidi ir para o laboratório mais próximo. O susto grande veio durante a tarde, quando o laboratório ligou para minha casa pedindo que eu retornasse para refazer o exame, pois eles tinham tido problemas com a minha amostra.  

O resultado saiu. Todas as taxas possíveis que um exame de sangue possa conter estavam 10% do mínimo. Falei com meus pais e conseguimos marcar um hematologista, meu médico e amigo de infância, para o dia seguinte. Quando cheguei, ele olhou os exames, olhou pra mim e disse simplesmente que não sabia como eu tinha conseguido chegar andando até lá. Aí decretou: "emergência, agora". 

Fui para o pronto-socorro com a recomendação de tomar duas bolsas de sangue. Além disso, precisaria fazer alguns exames bastante dolorosos para ter maiores informações. Aquele dia foi muito longo. Eu não imaginava que ainda ia piorar.

Angústia

Isso foi muito perto do Natal e os resultados demorariam cerca de 5 ou 6 dias até chegarem. Foi o pior Natal da minha vida, era difícil segurar a angústia de saber que havia algo errado comigo, sem saber exatamente o que era. Eu não conseguia pensar em mais nada. 

No dia 26, meu médico me chamou e recebi o meu diagnóstico: anemia aplásica. É uma doença rara, que ele disse atingir 15 mil pessoas por ano no Brasil. Nunca tinha escutado falar. Ele me explicou e decidi pesquisar muito na internet sobre isso.Basicamente descobri que a minha medula não produzia a quantidade suficiente de células sanguíneas necessárias para o corpo de um jovem de 27 anos. A qualidade era ótima, mas a quantidade, não. A minha medula tinha uma idade estimada de 70 anos. Resumindo, descobri que precisaria de um transplante de medula. Dali em diante começou a minha luta para consegui o doador. Os primeiros candidatos eram meus irmãos. Eles teriam que ser 100% compatíveis comigo. Os pais, possíveis candidatos, são somente 50% compatíveis com os filhos. Cada filho tem 50% de cada pai. Mas dificilmente esses 50% dos pais, 100% no total, são iguais entre os filhos. E, no meu caso, não foram. 

Teria que procurar um doador anônimo e fiz campanha, mas descobri que as chances são muito pequenas: 1 para 100 mil. É como estar com sede e ter à disposição apenas uma goteira que pinga muito pouco. Você pode morrer antes que aquilo faça algum efeito. Pesquisei e vi que haviam na época cerca de 3 milhões de pessoas cadastradas no banco nacional, número pequeno, já que tem mais de 200 milhões de pessoas no Brasil.Mas era a minha chance. O meu doador tinha que estar ali.Mesmo assim, anunciei aos meus amigos e em minhas redes sociais sobre a doença e a necessidade da doação de medula. A gente vive acostumado a ouvir que, nas maiores dificuldades, os amigos somem e só ficam os de verdade, mas descobri que é muito mais do que isso. Recebi mensagens de força de amigos de longuíssima data, colegas de alfabetização, amigos de todos os anos de colégio, amigos dos meus antigos trabalhos, de gente até que achei que nem gostasse muito de mim. Descobri que os amigos de verdade aparecem quando você precisa. Aquelas mensagens me deram muita força pra enfrentar essa batalha. Eu tinha que vencer. 

Nessa mesma época, vi uma reportagem de um menino de 2 anos, Henrique, também de Vitória da Conquista, que tinha leucemia e também precisava de transplante de medula. Entrei em contato com a mãe dele, falei do meu caso e que conseguiríamos sair dessa. 

Fui ao hemocentro da cidade e conversei com a enfermeira líder. Ela me disse que, em média, duas pessoas por dia apareciam lá para se cadastrar como doadores de medula. Duas pessoas por dia. A minha campanha e a de Henrique eram tão fortes, que cerca de 50 pessoas passaram a ir lá, por dia, para se cadastrar. Lembro que superlotou a unidade, a ponto de faltar material e deles pedirem que as pessoas voltassem em outros dias. Isso durou umas duas semanas.

Três doadores e mais uma luta

Um dia eu recebi a ligação do meu médico, me pedindo para ir ao consultório dele. Achei muito estranho, pois não havia feito exames de sangue naquela semana e tinha recebido uma bolsa de sangue dias antes. Ao chegar, a melhor notícia de todas. Não apenas um, mas três doadores estavam disponíveis no banco nacional e um deles já havia aceitado doar a medula pra mim. Aquela notícia transformou o meu corpo. Infelizmente, não da forma que eu esperava. Poucos dias depois, meu corpo começava a dar sinais de colapso. As idas à emergência começaram a ser semanais, assim como as transfusões de sangue. A fraqueza tomava conta e cada vez menos eu conseguia ter uma vida próxima do normal. Comecei a me cansar, no sentido físico e mental. Até o dia que eu soube que o Henrique não tinha conseguido. Infelizmente ele não teve a mesma sorte que eu, o corpo dele não aguentou e ele se foi. Eu não tinha o direito de reclamar de nada. 

Como meu transplante seria entre não parentes, não poderia ser feito em Salvador. Não demorou muito para que a Santa Casa de Belo Horizonte entrasse em contato para marcarmos uma primeira consulta, para explicações de todo o processo e mais alguns exames. Ao chegar, tive uma conversa importante e pude esclarecer todos os pontos. O meu médico em Vitória da Conquista já havia me dito que as chances de dar certo eram de 80%. Achei uma ótima porcentagem.Mas, só fui entender realmente a situação quando a médica de Belo Horizonte foi muito clara ao dizer que “a cada 5 pessoas que recebem o transplante, uma morre”. A Santa Casa marcou meu transplante para o dia 28 de maio de 2018. Mas havia uma pedra no caminho. Ou melhor, caminhões. Nessa época, aconteceram todos aqueles protestos dos caminhoneiros, em todo o Brasil. Devido à falta de recebimento de materiais e a grande possibilidade de que eu não chegasse a Belo Horizonte, o transplante foi adiado. Isso me fez pensar que, por mais que eles estivessem certos ou não sobre as reivindicações, isso traz um efeito enorme sobre a vida de outras pessoas, às vezes literalmente. Só percebi isso quando aconteceu comigo. 

Após o fim das paralisações, a minha internação foi marcada para o dia 10 de junho. Estava chateado por toda essa demora, pois sabia que meu tempo estava passando. Mas, ao chegar em Belo Horizonte, liguei a televisão e uma das reportagens falava sobre uma garotinha de 10 anos, que desde que nasceu vive com a Anemia Aplásica, a mesma doença que eu tinha, e que precisava de doador de medula. Eu não tinha direito de reclamar. 

A internação aconteceu num domingo. Ficaria isolado em um leito de hospital para todo o processo, e durante esse dia não poderia ver o meu pai. A minha mãe iria ficar comigo durante todo o tempo, para cuidar e não me deixar sozinho.Estar isolado com a sua mãe, ou qualquer outra pessoa, por 43 dias, sem sair do quarto é quase como estar no Big Brother. A diferença é que ser eliminado não é uma opção e o prêmio vale muito mais que um milhão de reais. Todo o meu internamento foi feito pelo SUS, num hospital público, porque era o indicado. E posso dizer que fui surpreendido pela qualidade de tudo. O quarto era muito bem equipado, os funcionários eram ótimos, uma equipe dedicada. Tive acesso a todos os medicamentos, inclusive à quimioterapia. 

O tratamento era basicamente matar a minha antiga medula e preparar o corpo para receber uma nova, para que ela pudesse crescer e se desenvolver dentro do meu corpo, sem rejeições e com a produção de todas as células sanguíneas normalmente. Parece simples de explicar, mas é complexo. O meu corpo dava todos os sinais de um colapso, dessa vez intencional, pois a minha medula deveria morrer. E foi curioso ver as reações do corpo a essa morte.Sofri com enjoos, os meus cabelos caíram de uma só vez, eu estava pálido, numa coloração amarelo ocre, olhos amarelados, fraqueza ao extremo, de não conseguir levantar na cama. Eu cheguei ao fundo do poço. E esse era o objetivo. O transplante ocorreu rápido. Em 3 ou 4 horas, uma bolsa de medula, que é parecida com uma bolsa de sangue, mas enorme, entrou pelas minhas veias e passou aos poucos a fazer parte de mim. E pensar que aquela bolsa foi doada por uma pessoa que nem me conhecia. O transplante em si é bem simples, sem a necessidade de cirurgia, a dificuldade é o corpo aceitar a nova medula e que ela se desenvolva. Os dias seguintes foram de muito cuidado. Sem esforço para nada. Os enjoos pioraram, a boca começou a formar algumas bolhas, e minha palidez continuava. Perdi 15 quilos em menos de 20 dias. 

Num dia, precisei sair da Santa Casa para fazer um exame especifico em outro hospital, o que deveria demandar um atendimento especial e super restritivo. Deveria, pois ninguém da equipe médica ou de enfermagem me acompanhou na ambulância e, quando cheguei no outro hospital, ninguém estava preparado para atender um paciente como eu.

Foi um dia bem ruim, me estressei, meus remédios acabaram e não havia reposição, além de ver meu acesso venoso estourar e sangue jorrar por todos os lados. Ao voltar para a minha internação, estava tão chateado que estava de cabeça baixa e não percebi que a equipe médica tinha enfeitado todo o meu quarto com balões e cartazes. (Foto: Reprodução) Reaprendendo a viver

A minha medula tinha “pegado”. Eu não tinha o direito de reclamar de nada. Dali em diante foi esperar mais uns dias para que a medula se estabelecesse e eu pudesse sair do hospital. Me lembro de rever a luz do sol, do vento no rosto, do movimento dos carros na rua, de ver pessoas “normais”, não somente médicos e minha mãe. Valorizei tanto aquilo. Infelizmente ainda não saía para minha casa. Teria que ficar próximo do hospital, para emergências e exames de rotina e obviamente Vitória da Conquista não era uma opção. Mais 90 dias, preso num quarto de um apartamento alugado, cheio de restrições médicas, alimentares, muitos remédios e cuidados diversos. Mas pude reencontrar meu pai e eventualmente meus irmãos, tia e prima, que vieram me visitar e ajudar a minha mãe a cuidar de mim, pois ela também precisava de descanso. 

Uma curiosidade dessa época é que minha alimentação tinha que ser super saudável. Mas não saudável da forma convencional. Devido a minha baixa imunidade pós transplante, eu deveria comer apenas comida industrializada. Não poderia comer comida de rua sob hipótese alguma, muito menos comer frutas, legumes e verduras, pois podiam estar contaminadas. Um tempo de muita lasanha, pizza e macarrão. Era o que era saudável pra mim. 

Mesmo precisando ficar isolado do público geral, eu precisava ir ao hospital para exames e consultas. E foi ai que tive a chance de conhecer meus “colegas de transplante”, outras pessoas que assim como eu também estavam lutando pra viver. Heitor, Lara e Gustavo tinham 3, 8 e 12 anos respectivamente. Dona Sunta (como era conhecida), era uma mulher de idade indefinida e eu nunca perguntei, uma vez que o tratamento tinha sido tão complicado para ela, que aparentava ter 70 anos. Ela perdeu muito peso, era só pele e osso. 

Daniel, de 18 anos, era o último dos transplantados. Conversávamos bastante quando nos encontrávamos e me lembro de uma vez em que comentava com ele sobre a sonda urinária que todos os pacientes precisavam usar. Durante 5 dias, aquilo foi extremamente incomodo e doloroso. Foi um dos piores momentos de todo o meu processo. Ele me disse que não se lembrava, pois na época que ele precisou usar a sonda, tinha tido uma parada cardíaca e ficou em coma por 9 dias na UTI. Depois eu descobri que ele já tinha tido uma úlcera e também uma trombose. Nunca mais falei da sonda urinária e lembrei: eu não tinha o direito de reclamar de nada.  Ricardo voltou para casa após 100 dias de transplante (Foto: Reprodução) Após 100 dias de transplante, estava finalmente liberado voltar para casa, desde que me apresentasse a cada 2 meses no hospital para exames e consulta. A volta para casa foi ótima, abracei minha avó, minha família e todos os meus amigos. 

Quase 9 meses de batalha eu estou, talvez, na melhor fase da minha vida. É verdade que ainda estou em tratamento, tomo muitos remédios e tenho algumas restrições, mas, ao completar um ano, daqui a 3 meses, vou estar completamente livre, sem sequelas e restrições, sem precisar tomar mais nenhum remédio. Eu vou levar uma vida normal.

Vivo nessa expectativa, mas sobretudo na expectativa de conhecer o meu doador anônimo, o meu herói da vida real. Caso ele autorize, eu poderei conhecê-lo após também daqui a 3 meses. Irei aonde quer que ele esteja para dizer pessoalmente o meu obrigado. Hoje a minha vida voltou ao normal. E obviamente voltaram os problemas do dia a dia, que todo mundo tem. Às vezes, durante a noite, eu vou me deitar chateado com algum problema e dou risada de mim mesmo. A gente só tem problemas porque vive e, ainda bem, tive minha segunda chance e posso resolvê-los. Os dias ruins só acontecem para que a gente possa valorizar os dias bons. Eu não posso reclamar de nada. 

Seja o herói de alguém. Doe Medula".