Barril linguístico: Salvador tem dialeto que quase nunca se leva ao pé da letra

Termos e expressões enganam quem vem de fora; veja glossário e evite esparros

  • D
  • Da Redação

Publicado em 29 de março de 2018 às 03:09

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Reprodução/Divulgação

‘É bala’ não é tiro, nem ‘queimado’, mas sinônimo de algo ‘massa’. ‘Massa’ não é macarrão, muito menos maconha, mas uma coisa ‘de lenhar’, entendeu? Outra coisa: ‘é lenha’ é quase o contrário de ‘de lenhar’, mas em nenhum dos casos me refiro a algo em que se põe fogo. Continua confuso? Piora. Por exemplo, ‘queimado’ - já citado - não necessariamente é algo posto à lenha, mas apenas sinônimo de ‘bala’, aquela de chupar. Porém se a bala em questão for mesmo tiro, Zé, aí é ‘barril’, e o melhor é partir a mil.

Já viu, né? Não tem pra onde correr: quem vem a Salvador vai se bater com esse dialeto oblíquo e dissimulado, que muitas vezes fala uma coisa, mas tá dizendo outra. Quer ver? Ouça essa resenha da jornalista Maíra Azevedo, a Tia Má."Uma vez um amigo meu paulista, um crush, veio falar alguma coisa pra mim, e eu disse 'me respeite'. Daí ele me mandou um textão dizendo que sim, que respeitava as mulheres negras, e eu comecei a rir. E eu queria explicar pra ele que 'me respeite' queria dizer [em Salvador] apenas 'não'", conta ela, aos risos.Esse tipo de interpretação literal costuma dar confusão, e pode ter consequências bastante sérias. O servidor público Eduardo Aguiar, 33, conta de um colega paulista que, quando veio morar por aqui, foi à escola do filho tirar satisfação com a diretoria. A criança chegou em casa dizendo que os coleguinhas "ficavam abusando ele". Painho pensou se tratar de um caso de violência sexual, mas foi tranquilizado: abusar, nesse caso, não passava de zombaria, chacota - zuêra, pra ser mais muderno.

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A jornalista Júlia Belas Trindade, 25, e a estudante de Jornalismo Cris Almeida, 24, acostumadas ao abuso diário do dialeto soteropolitano, foram inventar de usá-lo fora, mas o entendimento sobre comunicação não adiantou muito.“Quando fui pro Rio e disse ‘vire aí’ pra um cara me dar uma coisa, ele literalmente virou [o objeto]. No que ele fez isso, tive que traduzir e falar ‘não, me dá aqui esse negócio’”, lembra Cris.Já Júlia foi usar uma negativa-positiva e também não foi compreendida. “Recebi olhares estranhos ao dizer ‘oxe, já não gosto’, quando me chamaram pra beber”, conta a jovem, que tentava apenas enfatizar o desejo de atender à convocação.

Há outros casos curiosos de negativas-positivas como ‘é nenhuma’, usado para informar que é tranquilo atender a alguma demanda, e outros que parecem frases interrogativas. Exemplos: ‘aooonde?’, que não é uma pergunta sobre o local em que se realizará algo, mas um aviso de que ele não se concretizará, e o ‘não é o quê?’, que por algum tempo confundiu a cabeça da paulista Daniele Vich, 35, pesquisadora da Ufba que vive na Bahia há 4 anos e meio.“Eu não entendia que era afirmação e ficava repetindo a pergunta. Por exemplo: eu dizia ‘Fulana é legal?’, a pessoa respondia ‘não é o quê?’, e eu devolvia: ‘legal’”, relembra ela, que aperfeiçoou o baianês com a ajuda do marido soteropolitano. Teatralidade Mas por que diacho há tantas recorrências no léxico local de expressões traiçoeiras? Autor de um best-seller baseado em nosso dialeto, o escritor Nivaldo Lariú [sobrenome traiçoeiro da zorra!] ensaia uma explicação. “O baiano não fala só com a boca; ele fala com o corpo. Repare bem que as falas são sempre acompanhadas de gestos, de risos, de uma certa dança até... Então, eu creio que, de uma maneira geral, as expressões que envolvem essa ‘encenação’ são difíceis de explicar”, sustenta o autor do Dicionário de Baianês, que já vendeu 270 mil exemplares. O ator Sulivã Bispo lembra que entonação diferente muda sentido de termos (Foto: Betto Jr./CORREIO) Cria do teatro, o ator Sulivã Bispo, que faz sucesso na internet com a personagem Mainha, da página Frases de Mainha, concorda com a análise do escritor."A graça tá muito no jeito de a gente falar... O ‘oxente’, por exemplo, muda [o sentido] de acordo com a entonação. Tem uma teatralidade que é muito forte, e é do povo baiano. Então, eu acho que além de uma expressão popular, cultural e identitária, se torna também uma expressão cênica", analisa Sulivã.Mainha, aliás, explica como isso ocorre na prática.

Bom, então estamos combinados que, por aqui, é comum a boca dizer uma coisa, e o corpo sinalizar outra. Mas isso significa que somos uma legião de falsianes? Tia Má cita um exemplo que desarma essa possível crítica. "'Largar o doce', por exemplo, é uma expressão maravilhosa que não tem nada a ver com diabético, com parar de comer doce, e sim com a nossa capacidade de falar tudo na lata, de falar a verdade", argumenta a jornalista, que também considera nossas origens étnicas como um caminho ao entendimento.

"A Bahia é o estado mais negro fora da África, e a gente herdou, do continente africano, essa capacidade da criatividade. A gente ainda fala muito como se fosse uma espécie de idioma muito próprio”, analisa Maíra Azevedo. Tia Má diz que é comum ter dificuldade de explicar expressões soteropolitanas a pessoas de fora (Foto: Reprodução) Autora da tese de doutorado Vocabulário Dialetal Baiano, defendida no ano passado, Isamar Neiva, pesquisadora do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (Ufba), reforça essa ideia ao lembrar que a língua “é uma prática social que reflete a cultura de um povo”, e por isso também conta a sua história.“E como toda História, ela é fundamentada em fatos encenados e contracenados por personagens que atuam como protagonistas e/ou coadjuvantes”, diz Isamar, pontuando o viés dramatúrgico que tão bem utilizamos. A pesquisadora lembra ainda que algumas palavras e expressões do nosso vocabulário informal são marcadas por esses traços culturais aos quais, segundo conta, “os estudiosos da Lexicultura têm denominado carga cultural compartilhada”. “Elas parecem estar tão impregnadas no nosso cotidiano que não nos causam estranhamento. É como quando designamos o pão maior de ‘vara’, conhecido em outros lugares como baguete; ‘não dá água a pinto’ para definir pão-duro, avarento, dentre tantos outros”, cita Isamar.

O novo sempre vem Mas qual a explicação para que todo ano, invariavelmente, surjam novos termos e expressões, em muitos casos ressignificando palavras que já existem? Quem começa respondendo é o humorista e publicitário João Pimenta, 27, que com seus vídeos “em baianês” alcançou mais de 300 mil seguidores no Facebook e 31 milhões de visualizações em sua página no YouTube.“Todo ano nascem pessoas, todo ano tem a música do Carnaval, todo ano rolam inúmeras resenhas de bairro, tem resenhas novas, as palavras surgem naturalmente e ganham o mundo”, ilustra.A linha de raciocínio é semelhante à da pesquisadora Isamar Neiva. “Toda e qualquer mudança linguística acompanha e é acompanhada por mudanças sociais. Tomemos, por mote, a moda. Há 10 anos se usava alça de silicone para sutiã. Hoje não mais. Felizmente! No entanto, algumas peças permanecem, outras, desapareceram por um tempo e retornaram como uma ‘onda’ vintage ou retrô, dando espaço à customização”, cita a doutora em Letras.

Prova de que o novo sempre vem e, muitas vezes, pega, também está nos números do Dicionário de Baianês, de ‘Lariúvis’: desde 1991, quando foi lançado com 800 verbetes, foram nove reedições atualizadas, chegando hoje a mais de 1,6 mil termos e expressões. Entre as mais recentes, estão “não aperte minha mente” e “vou lhe dar a ideia”.

Mas nem sempre as ideias surgem de endereço desconhecido, como explica o blogueiro e comediante Cristian Beell, 20, outro jovem fenômeno da internet - ele comanda a página Humor Cyclonizados, com mais de 200 mil seguidores no Facebook.

O rapaz também bomba com vídeos nos quais abusa do dialeto soteropolitano e até já foi autor de neologismos que caíram na boca da galera. “Tem coisas que eu criei, como ‘gruvar’ [groovar], que substitui qualquer palavra. Por exemplo, 'vou gruvar uma novinha' quer dizer que você vai pegar... Ou quando tá todo mundo reunido e você vai se despedir e diz 'vou gruvar, vou gruvar', aí vaza [vai embora]”, cita Cristian, que chega a registrar, numa semana, 1 milhão de visualizações em seus vídeos. Os humoristas Cristian Beell, 20 anos, e João Pimenta, 27, fazem sucesso usando o baianês com criatividade na internet (Fotos: Divulgação) Sobre as ideias que surgem fora da sua cachola, mas dentro da sua principal zona de atuação - a cidade de Salvador -, Cristian também tem explicações. "Surgem novos bordões a todo momento porque a gente é um povo original, criativo... Então, eu acho massa, e vão surgir vários, e outros vão ficando pra trás. Tipo assim, 'meu rei' já foi usado há muito tempo, não usa mais, porém na Globo a galera acha que usa", conclui. Pois é, isso a Globo não mostra!

Confira um glossário com alguns termos e frases ‘enganosas’ de Salvador, parte delas retirada do Dicionário de Baianês: Abrir o gás - Ir embora, dar o zignal Abusar - Zombar, fazer chacota Adiantar - Ir embora ou fazer algo com mais celeridade Aonde? - Não; sem chance de algo acontecer Aperto de mente - Pressão psicológica Bala - Legal, bacana Baleado - Queimada (baleô) Banda - Pedaço, parte Barão - Rico, cheio da grana Barril - Esparro, problema, perigoso Barril dobrado - Muito legal; ou, a depender do contexto, problema em dobro Bater o baba - Jogar uma pelada (futebol) Bico - Chupeta de bebê Borboleta - Catraca, roleta Brinque! - Não brinque Brocar - Mandar bem, fazer algo bem feito, mitar Cabeça - Cara, amigo, colega, man, bróder, parceiro, meu chapa Cacete armado - Confusão Cacetinho - Pão francês Capote - Casaco de frio Casquinha - Pão-duro Cera(o) - Parceira(o) Cheio do pau - Bêbado Chicote - Bunda Chupa, Caetano! - Beija logo Cobra - Cobrador de ônibus Comer água - Ingerir bebida alcoólica; beber além da conta Comer pilha/reggae - Cair em papo furado; ser feito de otário; acovardar-se Como a porra - Pra caramba ("Esse cara fala como a porra!") Corrente - Pessoa de confiança  Dar o leite - Entregar o ouro; quando o zagueiro falha Dar testa - Enfrentar, reagir à altura De hoje! - Há muito tempo De lenhar - Muito legal, muito bacana Decente - Legal, bacana Descarga (de carro) - Escapamento Desgraça - Entidade mística do mal: a Pelada, ou a Lá Ela  Dor de facão - Dor no baço, após algum esforço E as porra - Etc.  É bala - É legal, bacana É lenha - Inaceitável; injusto Eu quero é prova e R$ 1 de big big - Duvido muito; prove que é verdade Fazer enxame - Fazer estardalhaço Frete - Flertar, paquerar Gala - Esperma Guaraná - Qualquer refrigerante. ("Me dê um guaraná de limão aí!") Invasão - Favela, comunidade Já não gosto - Gosto muito Jogue duro - Bote pra lenhar; mostre que você é capaz Lá ele - Outra pessoa, não eu Lá na casa da porra - Muito longe Largar o barro - Fazer cocô; desabafar Largar o doce - Dizer algo na lata, falar a verdade na cara Mangue - Sem organização, sem comando, mal feito Massa - Algo bom, bacana Me armei - Me dei bem Me respeite - Negativa para algo. "- Você vai pra praia hoje?" "- Com essa chuva? Me respeite!" Minha tia / meu tio - Vocativo para alguém mais velho Miserável (miserê, miseravão) - O cara Miúdo - Dinheiro trocado Motor - Motorista de ônibus Na mão grande - Algo feito com poucos recursos, na marra, na tora Na tora, na marra - À força, obrigado Não é o quê? - Sim, verdade Não tô comendo nada - Não tô caindo no seu papo furado Nenhuma - Resposta positiva. "- Posso contar com você?" "- É nenhuma [ou seja, sim]" Paleta - Longa caminhada Para o ano/a semana - Ano/semana que vem Passadeira - Travessa de cabelo, diadema, tiara Passado (comida) - Estragado Passeio - Calçada Pau viola - Grande briga na mão, sem uso de pedaços de pau ou outro objeto; trabalho árduo Pedir pra morrer - Sentir muita vergonha Pegar a visão - Andar na linha Picar - Lançar, arremessar algo  Pilha - Mentira, culhuda, fake news Piloto - Motorista de ônibus Plantada - Pessoa centrada, equilibrada Queimado - Guloseima, bala, doce Quem vai é coelho - Eu não vou. Se você quiser ir, assuma as consequências Quer c* e ainda quer raspado - Quer tudo de mão beijada, ou quer além do que foi oferecido R$ 50 trocados - R$ 50 em notas de valores variados Rapaz... - Expressão usada com interlocutores de ambos os sexos que demonstra espanto ou indica situação de alerta Recuperação - Ir para a prova final na escola Reggae - Qualquer festa Se bater - Encontrar alguém Se lenhar - Se dar mal Se oriente! - Tome jeito! Se respeite! - Me respeite! Segurar vela - Acompanhar sozinho um ou mais casais de namorados Sinal - Pinta no corpo Tabaco - Vagina Um c* dentro do outro - Amigos(as) inseparáveis Vai cair o cacau - Vai chover Vara - Baguete (pão) Velho (véi) - Alguém novo Viu - Sim  Zero ou um - Disputa que precede o par ou ímpar