Boa gestão e ataque fulminante: o segredo da Atalanta para encantar na Europa

CORREIO explica sucesso do melhor ataque da Itália, que faz história na temporada 2019/20

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  • Da Redação

Publicado em 28 de julho de 2020 às 12:16

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Atalanta B.C. / Divulgação

Contrariando o estigma colocado em cima das equipes italianas, de que jogam um futebol defensivo e com uma baixa média de gols, a Atalanta cativou o universo do futebol nesta temporada e se tornou o clube europeu mais surpreendente em 2020. 

Com 96 gols - e duas rodadas faltando para o fim do Campeonato Italiano -, a La Dea tem o terceiro melhor ataque entre as cinco principais ligas europeias e o melhor em seu país. São 20 gols a mais que Inter e Lazio na atual Série A, o que estabeleceu um novo recorde de gols na mesma temporada. Antes pertencia à Fiorentina, que marcou 95 vezes na longínqua edição de 1958/59. 

Aliás, não só a Atalanta demonstra esse futebol ofensivo. Entre os dez clubes que mais marcaram nessas cinco grandes ligas (Inglaterra, Espanha, Alemanha, Itália e França), quatro são italianos. Mas o que torna os "nerazzurri" da Atalanta tão especiais? É o que o CORREIO explica hoje. 

Para entender o sucesso do time, que está em uma inédita fase de mata-mata na Liga dos Campeões da Europa - em sua estreia na competição, diga-se de passagem - é preciso retornar alguns anos e prestar atenção em quem está nos bastidores. 

Desde quando assumiu a presidência da Atalanta pela primeira vez em 1990, depois da morte do antigo presidente Cesare Bortolotti, Antonio Percassi se tornou figura fundamental para o clube, que representa a pequena cidade de Bergamo, com pouco mais de 120 mil habitantes no Norte do país, a apenas 50km da badalada Milão da dupla Inter e Milan. Contra a Juventus, campeão italiana, a Atalanta chegou a colocar 2x0, mas sofreu o empate no fim (Foto: Atalanta B.C. / Divulgação) Afirmação

A presença de Percassi, que já tinha uma conexão com a torcida por ter sido zagueiro do clube na década de 1970, não significa que a Atalanta viveu grandes momentos de glória. Aliás, a primeira passagem dele foi relativamente curta, de 1990 a 94, quando o time foi rebaixado para a segunda divisão. 

Mas, principalmente depois de 2010, quando retornou a Bergamo, ele se tornou peça importante para o avanço do time. Junto com Percassi, entra o técnico Gian Piero Gasperini, que chegou ao comando em junho de 2016.

O clube irá para sua décima temporada consecutiva na Série A, o que significa que a torcida têm acompanhado um processo de consolidação na elite do futebol italiano. E em um recorte das últimas quatro temporadas, dá até para apontar o time como um dos protagonistas do campeonato. Temporada 2016/17: 4º lugar na Série A e classificação para a Liga Europa Temporada 2017/18: Eliminada no mata-mata da Liga Europa para o Borussia Dortmund. No italiano, 7º lugar e vaga nas eliminatórias para a competição Temporada 2018/19: Eliminada antes da fase de grupos da Liga Europa, 3º lugar no Italiano e vaga direta para a fase de grupos da Champions Temporada 2019/20: Atualmente em 3º lugar na Série A, já classificada para a próxima Champions e disputando as quartas de final da edição atual. Enfrentará o PSG no dia 12 de agosto Essa consistência rende importantes frutos para qualquer clube de futebol. Por mais que não seja tão expressiva quanto levantar um troféu, a presença entre os destaques da liga rendeu um elenco mais robusto ao time do norte da Itália. 

Diferentemente dos clubes europeus comandados por empresas ou bilionários que injetam dinheiro e fazem contratações de peso, o modesto Atalanta - agora não mais - conquistou seu espaço da maneira mais encantadora: com uma boa gestão.  Gasperini conseguiu trazer o equilíbrio entre um ataque muito eficiente e uma defesa que não toma muitos gols (Foto: Atalanta B.C. / Divulgação) Com boas colocações, o poder aquisitivo do clube subiu, o que significa contratações de maior qualidade. O grande exemplo são os dois reforços que chegaram no início da temporada 19/20: os atacantes Duván Zapata e Luis Muriel. A dupla colombiana pode não estar entre os maiores marcadores do planeta, mas são os dois artilheiros da equipe comandada por Gasperini e vêm dando trabalho a todas as defesas que enfrentam.  

A repórter Clara Albuquerque, que é correspondente do Esporte Interativo na Itália, acompanha o crescimento da La Dea, que vive “um momento mágico”, define. “Está longe de ser um resultado do acaso. Essa Atalanta é fruto de um projeto sólido, já de longa data, sustentável e interessantíssimo. Com um trabalho eficiente de scouting, tanto pelo lado financeiro quanto pelo lado de retorno em campo”, avalia Clara. 

Ela ainda destaca o bom trabalho desenvolvido nas categorias de base, que na avaliação da Federação Italiana de Futebol (ou Federazione Italiana Giuoco Calcio em bom italiano) tem a melhor base de todo o país. 

Essa é uma outra seara que dá sustento ao clube, como a venda do jovem meia-atacante sueco Dejan Kulusevski, 20 anos, que está a caminho da Juventus por 35 milhões de euros. Ele chegou na equipe italiana ao 16 anos por apenas 165 mil euros, segundo o site Transfermarkt. Para te ajudar nas contas: o valor da venda foi mais de 200 vezes maior que o da compra.

Kulusevski é só mais um entre as centenas de garotos que passam bela divisão de base da Atalanta. Junto com a primeira passagem de Percassi, Mino Favini chegou para ser um divisor de águas na história do clube. Com liberdade para atuar no monitoramento da garotada, ficou no clube 24 anos, e foi responsável por elevar o nível da categoria.

Foram 17 títulos conquistados com a base, incluindo três Campeonato Primavera, que é sub-19, e é considerado o mais importante das divisões de base italiana. O resultado do seu bom trablho gerou não só bons jogadores para o elenco principal, mas também vendas valiosas para clubes de maior expressão. Favini faleceu em abril do ano passado, aos 83 anos.  

De olho no campo e no banco

O reflexo da boa gestão e de um elenco capacitado se vê no campo. Além dos resultados crescentes destacados, é importante ressaltar o trabalho de Gasperini. O técnico italiano consegue dar boa rotatividade no elenco, principalmente no setor de ataque. O já mencionado Luis Muriel é prova de como o comandante entende o seu elenco e sabe mover as peças. Com 18 gols, Muriel é o artilheiro do time - empatado com Zapata - mas com a diferença de que ele é reserva. 

Das 32 partidas que contabilizou na Série A, o camisa 9 do time entrou como titular em apenas nove, mas o suficiente para manter o esquema de jogo treinado por Gasperini. O esquema, aliás, é defensivo só no papel. Com três zagueiros, entre eles o brasileiro Rafael Tolói, ex-São Paulo e Goiás, o time consegue ter uma saída de bola com muitas alternativas, principalmente se o adversário não fizer pressão com seus homens de frente. Gráfico mostra que a Atalanta faz mais gols no segundo tempo. Mesmo com as substituições, o time mantém o ritmo ofensivo (Foto: Reprodução Série A)  Pela lateral surgem figuras como o holandês Hans Haterboer, na direita, e Robin Gosens pela esquerda, que apoiam muito durante as transições em velocidade. A atuação como ala já rendeu a Gosens nove gols na liga nacional. 

No meio, a Atalanta tem a felicidade de contar com mais de um nome para fazer o jogo funcionar. Com o centro do campo bem povoado, a equipe de Gasperini consegue fazer boas jogadas de triangulação e tem os chutes de fora da área como um recurso.

A Atalanta soma, segundos dados da Série A, 305 chutes ao gol. O número é bem superior aos de Inter, Juventus e Lazio, que tem 263, 256 e 248 finalizações respectivamente.

Vale destacar atletas do setor como o esloveno Josip Ilicic, que já soma 15 gols e oito assistências no "Italianão", e o argentino Papu Gomez. O camisa 10 é a cereja do bolo de Bergamo. Com 16 assistências, ele se sobressai diante desse coletivo que encanta tanto e, nas palavras de Clara Albuquerque, é a “alma desse time”.

Ainda é interessante lembrar aqui de outros jogadores que se destacaram nesta temporada, como é o caso dos também meias Pasalic, Malinovskyi e Freuler, do volante Marten de Roon e de Mattia Caldara. O zagueiro emprestado pelo Milan até junho de 2021 é nome certo na defesa ao lado de Tolói.  O argentino Papu Gomez leva a sério aquele ditado: ele é 10 e a faixa (Foto: Atalanta B.C. / Divulgação)  Pode vir, Ney! 

Agora que já é possível entender de onde vem o ótimo futebol da Atalanta na temporada, por que não pensar no que o clube pode alcançar? O jogo contra o Paris Saint Germain, comandado por Neymar, já é no dia 12 de agosto, em Lisboa, e vale ressaltar que o time italiano tem, sim, chance de classificação.

Começando pelo argumento mais simples, mas não menos importante. O confronto será definido em jogo único, como foi determinado pela Uefa. Em 90 minutos muita coisa pode acontecer e Papu Gomez e seus companheiros não têm o que perder. Aliás, esse já é um segundo motivo que favorece a Atalanta. 

O favoritismo - e até uma certa obrigação - para passar de fase está todo na equipe francesa, que já não se contenta com os títulos na fronteira nacional e almeja dar o grande salto de patamar como retorno aos pesados investimentos feitos nesta década. “O time de Gasperini participa pela primeira vez na sua história da competição e vai sem responsabilidade ou pressão pro jogo e isso pode ser positivo, considerando que, do outro lado, PSG entra com o favoritismo”, lembra Clara.

O outro ponto está relacionado com o tempo dentro de campo. Com a Liga Francesa encerrada por antecipação por causa da pandemia do novo coronavírus, o PSG optou por fazer amistosos para dar rodagem ao elenco que estava parado. Já a Atalanta voltou com o Campeonato Italiano, que termina no dia 2 de agosto, e está embalada.  Elenco quebrou recorde particular na UCL e entre sem muita cobrança contra o PSG (Foto: Atalanta B.C. / Divulgação) Desde a retomada foram 11 jogos, sendo oito vitórias e três empates. O time não sabe o que é perder uma partida desde janeiro, quando foi derrotado em casa para o Spal por 2x1. Somados com os confrontos de antes da paralisação, já são 16 partidas de invencibilidade.

E por último, e ainda mais trágico para o PSG, é a lesão de Mbappé. Depois do duro carrinho que sofreu contra o Saint-Étienne na final da Copa da França, sexta-feira passada (24), o atacante ficará três semanas fora cuidando do tornozelo direito.   

Se o projeto da Atalanta continuará em crescente, isso não há como saber. Mas até então a lição de uma boa gestão, planejamento e estilo ofensivo de jogo pode, e deve, servir de espelho para clubes europeus e também brasileiros. Ah, e sobre os 96 gols em uma edição do Italiano, o recorde pode ser atualizado logo mais: o time visita o Parma nesta terça-feira (28), às 14h30. Infelizmente não há detentores dos direitos de transmissão no Brasil e apenas o canal por assinatura RAI vai exibir.

*Com orientação do editor Herbem Gramacho