Breve tratado sobre o fogo

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  • Paulo Sales

Publicado em 2 de setembro de 2019 às 05:00

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Em Matadouro 5, seu contundente libelo contra a brutalidade da guerra, Kurt Vonnegut descreveu assim o bombardeio aliado sobre a cidade alemã de Dresden, um tesouro arquitetônico conhecido como a Florença do Norte: “Havia uma tempestade de fogo no exterior. Dresden era uma única labareda. Esta única labareda devorava tudo quanto era orgânico, tudo quanto queimasse. Quando os americanos e seus guardas afinal saíram, o céu estava negro de fumaça. O sol era um ponto incandescente. Dresden, agora, parecia a lua; só tinha minerais. As pedras estavam quentes. Todo mundo nas vizinhanças estava morto. Coisas da vida.”

Consta que Paris por pouco não teve destino semelhante ao de Dresden - e de tantas outras cidades destruídas na Segunda Guerra. A versão que entrou para a história conta que Hitler, acuado pela aproximação dos aliados, mandou seu exército incendiar a capital francesa, até então ocupada pelos nazistas. Por telefone, chegou a perguntar se Paris “já ardia em chamas”. O ditador havia determinado até mesmo a destruição de alvos específicos: as pontes sobre o Sena, a Torre Eiffel, a Ópera, o Sacré Coeur, a Notre Dame (que por ironia maligna do destino ardeu em chamas meses atrás). Transmitida em 23 de agosto de 1944, a ordem não foi cumprida pelo general Dietrich von Choltitz. Ele se deu conta de que ela vinha de “um homem que se afundava rapidamente na loucura”, num raro acesso de compaixão que, em se tratando de um nazista, não deixa de ser um contrassenso. Com isso, realizou um dos maiores atos de heroísmo da história militar.

É impossível mensurar a magnitude dos horrores da guerra, e felizmente o Velho Mundo parece ter se dado conta do quanto eles foram sobretudo inúteis. Mas ali a insânia tinha ao menos uma motivação: destruir o inimigo. Há outra modalidade de insânia ainda mais difícil de se compreender: é quando um país que não está em guerra resolve tacar fogo em seu próprio território. Aconteceu na idade antiga, quando Nero ordenou que Roma fosse queimada, para se deliciar com a visão de suas colinas tomando a forma de labaredas. E acontece agora no Brasil, com a Floresta Amazônica virando uma imensa reserva de carvão. Em ambos os casos, com a anuência de pessoas que caberiam perfeitamente na definição dada a Hitler pelo general alemão.

Para o bem da humanidade, Roma passou quase incólume por Nero e outros dementes que vieram depois. Permanece assombrosa de tão bela, com seus monumentos, afrescos e ruínas a céu aberto, que evocam o que a civilização produziu de mais valioso e fascinante. No caso da Amazônia, no ritmo em que está sendo dizimada, talvez não tenhamos a mesma sorte. Ao contrário da Cidade Eterna, não é um produto da civilização que está sendo posto abaixo, e sim uma obra de arte que levou milênios para ser erguida pela natureza. É impossível mensurar a magnitude desse horror. E não há um von Choltitz para nos salvar.