Carnaval sem roubadas para mulheres e pipoqueiros

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  • Vanessa Brunt

Publicado em 5 de março de 2019 às 05:05

- Atualizado há um ano

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Em 2010, no auge dos meus 15 anos, o ponto alto para os adolescentes soteropolitanos que ainda não sabiam o que era curtir o Carnaval e nem baladas à noite, eram as chamadas de matinês. A festança começava à tarde e acabava em torno de 20h, nos fazendo ir da independência de entrar em uma boate sem os pais até a dependência relembrada quando os carros dos adultos buzinavam na entrada após a despedida do DJ.

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Naquela época, não chamaria de ‘Maria-vai-com-as-outras’ os jovens beijoqueiros que repetiam as atitudes dos amigos ao encostar os lábios em bocas desconhecidas. É fase de ainda descobrir os próprios nãos – apesar de já ser etapa para respeitar os nãos alheios. Afinal, hoje (ainda bem), o meu irmão de 16 anos tem plena consciência de que ‘depois do não é tudo assédio’ e, assim, ele só comete tal atitude com consentimento. Mas, assim como ele, nessa fase de primárias e grandes autodescobertas, eu também permitia que o beijo rolasse quando um garoto de papo legal, que nunca tinha antes aparecido na minha frente, surgia.

Foi ainda aos 16 anos, porém, no meu primeiro Carnaval, dentro de um bloco repleto de jovens com idades semelhantes, que eu percebi que aquela não era a maneira mais saudável, para mim, de curtir uma boa música e um bom momento com os amigos. Não entendia a sensação de ardência no estômago quando eu chegava em casa aos 15 e percebia a conexão rasa e com pouco nexo que havia acontecido entre mim e outro ser humano. Ali, como foliã, vendo as milhares de outras formas de diversão, foi que defini que não beijaria mais desconhecidos em meio às festanças.

Não me leve à mal. As minhas amigas continuam encaixando bocas como parte da vida pipoqueira – e não as julgo, contanto que não me empurrem para fazer o mesmo. É que... você já parou pra olhar o tanto de gente que se ajuda no Carnaval quando alguém se perde ou se machuca? Já parou para analisar os grupos de amigos que não precisam de ninguém além deles e das fantasias brilhantes para animar toda uma nação? O Carnaval vai muito além de uma festa sobre pegação. É, acima de tudo, sobre empatia.

E foi de abraço em abraço que a maior festa de rua do mundo virou etapa fundamental para a minha transição de autoconhecimento sem necessidade de beijos. Foi ali que parei para perceber, finalmente, que dançar, comer pipoca no meio de uma música e fazer novas amizades bastavam para que uma noite de confetes fosse a mais intensa. Em 2010, anos antes de colocar os pés pulando entre a Barra e a Ondina, mal sabia eu quem era.

Atualmente, encontro diversas pessoas (incluindo homens) que, assim como eu, curtem correr atrás do trio sem precisar puxar a mão de ninguém. Um ‘oi, tudo bem?’ rende muito mais fácil um número de telefone (e quem sabe um beijo em outro reencontro festeiro) do que uma agressão física, como é o caso de um puxão de cabelo ou no braço. Porque, sim, esses atos são agressivos e totalmente fora da conscientização atual do mundo.

ERROS E ACERTOS SEM ABADÁS “Há glitter no chão depois do Carnaval, ao lado do rastro de sangue”. Essa é uma frase de um dos meus livros e, apesar de metafórica, ela também reluz diante do lado literal. Porque, apesar de toda a alegria e da segurança maior que percebemos atualmente para os foliões, as brigas ainda são os lados mais tristes e inevitáveis da folia.

Em 2017, anos depois de curtir muitos carnavais sem beijos na boca, o bolso apertava e resolvi arriscar a vida fora das cordas ou dos camarotes. Foi na pipoca carnavalesca que aprendi outras tantas lições, para além do meu próprio autoconhecimento e das linhas machistas. Lições essas que misturam os lados belos e grotescos da melhor época do ano e que gostaria de poder berrar para todos, como agora farei.

A primeira lição aconteceu justamente quando me empolguei por perceber a tranquilidade da pipoca. “Tem muito mais risco de ser assaltada”, “tem certeza que não vai em camarote? Pipoca é um negócio perigoso”: foram comentários assim que ecoaram na minha mente antes da primeira experiência livre de abadás. Mas, então, a surpresa se instalou. Aquela empatia que citei ali em cima foi tão vista quanto em qualquer bloco de renome baiano. Os homens, inclusive, foram muito mais respeitosos do que aqueles com camisas caras e coloridas. E os problemas, de lá para cá, também foram basicamente os mesmos.

Policiais passam a todo momento em cada canto carnavalesco – e essa foi, inclusive, a minha salvação para o primeiro susto que tomei; no dia em que fiquei sem ar.

Acontece que eu não tinha visto a programação do dia e ninguém que estava me acompanhando estava também ciente de que o cantor Igor Kannário iria passar arrastando a sua multidão. Descendo da Ondina para a Barra, estava eu e a minha animação por ter percebido que a pipoca é tão aconchegante quanto qualquer outra forma de curtir a festa. O problema é que estávamos indo na contramão dos trios e, sem que fosse sentido ou percebido, o coro que gritava ‘É tudo nosso e nada deles!’ invadiu os arredores da minha galera.

O pessoal estava animado e curtindo a folia sem brigas ou demais tensões. A questão citada aqui não tem a ver com o cantor e nem com o seu público, mas com o tipo de trio para cada folião.

O pessoal que acompanhava Igor dava empurrões para os lados com forças brutais, mas ninguém ali estava se machucando ou tendo a intenção de ferir ao outro. Era apenas o jeito deles de demontrar presença e animação.

Mas, para mim, aquilo foi sinônimo de asma. Tenho 1,56 de altura e meu ar foi totalmente tomado pelos braços e cotovelos que se encostavam e rebatiam. Como não tenho pique pra entrar nesse tipo de empurra-empurra, olhei para as minhas amigas como um pedido de socorro – mas as pupilas delas estavam na mesma situação sufocante.

Foram minutos de terror, em que eu não conseguia achar ar para os pulmões, mas não podia sequer parar de pular. Foi então que a fila de policiais chegou, passando pela massa de forma ordenada.

Todos sabem que, apesar de prezarem pelo cuidado com e do povo, ainda existe muito racismo e outras problemáticas envolvidas no tratamento dos policiais com a maioria; então, por respeito e também por medo, todos têm a plena consciência de que quando eles passam, é necessário abrir espaço e jamais criar algum empecilho para que o caminho da polícia continue em frente.

Rezando para que nenhuma agressão se instalasse ali (ou seja, para que o povo apenas abrisse alas sem brigas ou ações que necessitassem de intervenções), fui para ‘o fim da fila’ dos policiais, agarrando as meninas pelas mãos, e consegui, finalmente, sair do sufoco.

Eis que vieram então os vários primeiros ensinamentos que listo agora:

- Quando estiver curtindo na pipoca, escolha um local fixo e próximo a algum camarote (onde existem seguranças), para aproveitar a sua festança. De lá, você pode se aproximar de blocos que estejam passando, mas não vai correr o risco de ficar preso em algum incidente no meio do povo.

- Anote ou, ao menos, pesquise qual a programação do dia do seu circuito carnavalesco. Assim, saberá se o ritmo do público daquele trio é algum que você pode arriscar fazer parte, caso ele passe e você queira participar.

- Caso deseje mudar de lugar ou curtir o carnaval andando por aí (na pipoca), vá sempre pelas beiradas, nos chamados de ‘passeios’, onde a galera não está pulando de fato e onde, geralmente, as famílias se instalam.

- Marque um ponto de encontro que seja fácil de chegar mesmo quando tudo estiver lotado e animado. Não adianta combinar um canto no qual será inviável de chegar caso um trio de peso passe por perto. Portanto, elabore bem um local de maior tranquilidade para encontrar os amigos perdidos, como aconteceu com uma das minhas integrantes no meio do incidente.

Mas, o caos não para (e nem parou) por aí. Saindo da pipoca frenética, encostamos em um espaço aparentemente calmo e compramos uma água. Logo ali, porém, uma briga foi iniciada. “Ele tem uma faca!”, gritaram. E, antes que os policiais se aproximassem para uma resolução, a galera já havia começado a ‘abrir espaço’ para que ninguém se ferisse acidentalmente em meio à confusão.

Mas, nessa própria abertura de roda, um outro empurrão pode acabar ferindo um inocente na correria. Tomei uma queda e estava prestes a ser pisoteada ali mesmo por aqueles que só tentavam se proteger.

Fui levantada por alguma mão salvadora da pátria, mas percebi que se eu tivesse ido para o lado oposto, ao invés de andar para trás no fluxo do pessoal, talvez a situação fosse menos traumática. Ganhei um roxo e um cuidado maior para quando outro afastamento de briga vier tentar a porrada.

Achando que, finalmente, tinha acabado a sequência de infortúnios, sentei em uma das ladeiras do Morro do Gato para recuperar o ar (ladeiras essas que, geralmente, são ótimos pontos de parada para quem quer respirar um pouco em meio aos pulos). Lá, apareceu um cara puxando papo com a minha trupe. E, como sempre sou muito aberta para fazer novas amizades com aqueles que são respeitosos, as minhas amigas interpretaram que eu estava apta a bater papo com o rapaz.

Não era o caso. O ar ainda não havia sido reposto, precisava ficar sozinha naquele momento e o meu ‘não’, não o impediu de continuar tentando iniciar novos assuntos.

A situação estava incômoda e não tive o suporte das meninas para me livrar do caso de uma maneira que não fosse rude (o que, infelizmente, em alguns momentos pode até acarretar em certas agressividades por parte dos moços). Percebi então a importância de criar um código com elas para quando quisesse suporte para ficar ou para ir embora de algum caso semelhante.

E, em meio a esse toque simples, vieram outras listas de alertas a serem emitidos, que aprendemos e definimos juntas:

- Mulheres, levem sempre papel higiênico no bolso. Ele pode servir para ajudar no xixi (não espere encontrar algum em banheiros químicos), no suor sem borrar a maquiagem ou até em algum machucado recorrente.

- Não pare por muito tempo caso deseje dar uma pausa para descansar. Quando a adrenalina passa, a dor dos pés e das pernas chegam de forma fervorosa e fica muito mais complicado de levantar e aguentar mais algumas horas depois. Deixe para sentir a dor quando realmente for deitar, em casa. Antes disso, dê pausas curtas e volte a curtir. Lembrando, obviamente, de usar um sapato confortável e, de preferência, fechado (não arrisque, por exemplo, sapatilhas novas, que podem dar calos).

- Coloque a pochete com dinheiro por dentro do short e, em caso de confusão ou esbarros, coloque a mão pressionando a porchete para proteger os seus documentos e bens materiais daqueles que podem tentar furtos. Ademais, leve um celular antigo, de preferência, com créditos para SMS (já que ligar na folia não adianta: não dá para ouvir nem ruídos, em canto nenhum da rua).

E, por fim, relembre: é sobre empatia, mas também é sobre amor-próprio. Aja como lhe faz bem e ajude quem puder. Beije 30 se quiser, contanto que não seja pela quantidade. Só não aceite água de estranhos.

Carnaval é mesmo uma mistura de cordas bambas, mas é melhor ainda sem elas.

Vanessa Brunt, 23 anos, é jornalista e escritora

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