Casamento infantil: Bahia tem 21 matrimônios de menores de 19 anos por dia

Estado registrou mais de 7,7 mil uniões com pessoas com menos de 19 anos em 2017

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  • Da Redação

Publicado em 31 de julho de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Estudo sobre casamentos infantis foi apresentado nesta terça-feira (30) em Salvador (Foto: Marina Silva/CORREIO) Enquanto crianças estão brincando e adolescentes saem para passear com os amigos, alguns nessa mesma faixa etária estão se casando. Na Bahia, em 2017, mais de 7,7 mil casamentos ocorreram entre garotos e garotas com menos de 19 anos, segundo dados divulgados nesta terça-feira (30) pelo IBGE - são, em média, 21 matrimônios envolvendo crianças e adolescentes por dia no estado. E esses são apenas os indicadores de uniões oficializadas. 

Perante a Organização das Nações Unidas (ONU), o casamento é considerado infantil quando um dos noivos tem menos de 18 anos. Apesar de ser reconhecido internacionalmente como uma violação aos direitos humanos, o Brasil é o quarto país do mundo com o maior número de uniões com menores. Foram 123.473 pessoas com até 19 anos se casando em 2017, o que representa 11,6% dos matrimônios firmados no ano. Dois anos antes, em 2015, a Bahia foi o quinto estado com mais casamentos do tipo no país.

No Brasil, é proibido formalizar a união com menores de 16 anos. Em março deste ano, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei que mudou o entendimento que permitia que esses adolescentes se casassem oficialmente em caso de gravidez ou para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal.

A realidade destes casamentos no Brasil é apontada no estudo “Tirando o Véu: casamento infantil no Brasil", apresentado nesta terça-feira (30) no Centro de Cultura da Câmara Municipal de Vereadores de Salvador. Uma das principais amostras da pesquisa foi levantada na Bahia, nas cidades de Salvador, Camaçari e Mata de São João.

Na Bahia, a maior parte dos casamentos infantis envolve meninas. Em 80% dos 7,7 mil estava envolvida uma mulher de até 19 anos. Em dois casos, elas tinham menos de 15. Entre os meninos, foram 1.411 casamentos com menores de 19 anos e nenhum menor de 15.

Apesar de ainda representarem 12% do total de matrimônios no estado, as uniões infantis vêm caindo nos últimos anos. Em 2003, foram 12.038 casamentos infantis na Bahia (26,5%). Em 2007, caiu para 11.082 (19,3%) e em 2017, chegou a 7.758 (12%).

A supervisora de Disseminação de Informações do IBGE, Mariana Viveiros, aponta que a redução no número de casamentos infantis se deve ao maior acesso das meninas à educação e a mudança nos padrões sociais impostos.“As meninas se casarem cedo é uma questão feminina que tem a ver com uma cultura. Já foi muito mais importante e vem caindo porque as mulheres estão estudando mais. Não se vê mais o casamento como um rito de passagem para as meninas”, aponta.Além de chamar atenção para os casos de casamentos infantis, o estudo permite que os gestores criem políticas públicas mais efetivas para enfrentar essa realidade.

“É uma temática nova, mas um costume antigo. Na Bahia, a conduta é normalizada e a falta de conhecimento na identificação prejudica muito políticas para poder reduzir esse número, porque as pessoas não veem isso como uma conduta errada”, pondera a secretária municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude, Rogéria Santos.

Motivações De acordo com a gerente de Gênero e Incidência Política da Plan international Brasil, Viviana Santiago, responsável pelo estudo, a Bahia foi um dos estados selecionadas para sediar o estudo pelo grande número de casamentos infantis aqui formalizados. Mas, o estado também desponta pelo elevado índice de gravidez na adolescência e pelo número de casamentos forçados devido à religião.

Os dados apontados pelo estudo mostram que o tabu da sexualidade, especialmente a poda da vida sexual de meninas, são os grandes responsáveis pelos casamentos precoces. Muitas famílias obrigam que as suas filhas se casem quando ficam grávidas ou até mesmo ao descobrir que as garotas iniciaram a atuação sexual.

Foi exatamente esses dois fatores que fizeram com que Jéssica Dantas, 26 anos, se casasse aos 17. A atual coordenadora de infância e adolescência da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ) conta que era uma 'menina adultizada e erotizada', por isso, sempre quis ser mais independente e experiente. Grávida, Jéssica se casou aos 17 anos e viveu relação abusiva (Foto: Marina Silva/CORREIO) “Aos 15 anos comecei a namorar. Aos 16 engravidei e aos 17 minha filha nasceu. Decidimos constituir uma família. Eu sou de uma família evangélica, eu acreditei que era pra mim e vivia uma união estável”, contou Jéssica.Em 2017, mais de 38 mil meninas de 10 a 19 anos se tornaram mães na Bahia. Um percentual de 19% de todos os nascidos no estado naquele ano, apontam os dados da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab). Viviana explica que a gravidez está intrinsecamente ligada ao casamento, sendo a causa e a consequência deste, não só aqui como em todo o país.

“Todas as meninas que se casaram estavam exercendo relações afetivas e sexuais com os parceiros. Na maioria das vezes, as famílias não sabiam e quando souberam isso culminou na obrigação do casamento”, disse.

É o tabu da sexualidade que faz com que as famílias não toquem no tema sexo dentro de casa. Para Viviana, esse comportamento deve ser mudado para que o número de crianças casadas reduza cada vez mais.

“A gente tem que pensar como meninos e meninas não recebem informação para exercer sexualidade com responsabilidade. A gente ainda é um país que acredita que se um adolescente receber informação sobre sexo, ele vai querer ter sexo. Mas não, porque não há um processo de curiosidade”, explicou.

Violência Outro fator que chama atenção da Plan na Bahia é a normalização da violência dentro das uniões entre meninas e homens mais velhos. Viviana aponta que a relação é uma disputa de poder e que os homens mais velhos tendem a usar a sua idade para mandar na companheira. Nesses casos, o machismo tende a imperar na vida conjugal.

“As meninas acham que a violência é para o bem delas, como se fosse uma forma de proteção. Elas não conseguem entender essa violência doméstica porque acham que tudo tem a ver com o fato delas estarem aprendendo. Existe um processo de romantizar essa agressão no começo do casamento”, explicou.

Mesmo estando em um relacionamento abusivo com seu companheiro quatro anos mais velho, Jéssica acreditou nas promessas do então marido e ingressou no casamento. “No relacionamento eu sofri abuso, fui agredida por nove anos. Após descobrir vários problemas de saúde e não ter o apoio dele, eu vi que ou eu morria ou conseguiria sair e salvar a minha vida”, contou. Para Viviana, da Plan International, tabu da sexualidade precisa ser superado para que números diminuam (Foto: Marina Silva/CORREIO) A psicanalista Niliane Brito explica que muitas meninas buscam uma proteção nos seus companheiros mais velhos, um papel quase paterno, enquanto os homens veem nesta relação um ambiente permissivo para exercer seu poder.“Há grande risco da menina estar com uma pessoa que quer o controle sobre ela. Elas acabam confundindo a violência com cuidado. Pela idade, as esposas não tem noção do que é repassado de amor e acabam acreditando que é isso que elas merecem”, afirmou.Estudos Para as meninas, a gravidez é comumente um fator de evasão escolar. Como a gestação precoce está associada ao casamento, muitas esposas saem da escola para cuidar dos filhos e da casa. O que vai de encontro com a ideia das garotas de que casar é ganhar liberdade e ascender socialmente.

“Quando essas meninas se casam, muitas delas engravidam e estão mais expostas ao risco da violência doméstica por estar com um homem mais velho. Elas têm dificuldade de voltar a estudar, de se inserir no mercado de trabalho formal e ficam responsáveis pela criação dos filhos”, explicou Viviana.

A história de Jéssica confirma essa afirmação. Depois de terminar o ensino médio aos 16 anos, ela só foi ingressar na faculdade de Direito aos 20, e com muitas dificuldades. “Eu tive o apoio da minha família e consegui me formar em Direito. Eu pensei que não conseguiria, mas consegui retomar os estudos. Eu ia com a minha filha pra faculdade. Até passei no concurso para o Tribunal de Justiça”, relembrou a coordenadora, que hoje trabalha com políticas públicas para evitar que crianças repitam a sua história.

Niliane Brito conta que é difícil para a menina retornar à escola após um casamento e uma gravidez. “A criança abre mão da vida social, da vida educacional, abre mão de toda a sua estrutura. Ela se transforma emocionalmente porque agora ela vai ficar com alguém que depende dela, apesar dela ainda depender dos pais”, afirmou.

Diferente das meninas, os meninos não tem a vida escolar tão impactada pelo nascimento de um filho. “Os garotos podem sair da escola, mas sempre retornam”, disse Viviana, que ainda apontou que a principal preocupação dos entrevistados do gênero masculino é a necessidade de trabalhar para sustentar a família.

Queda no número de casos Com mais de 123 mil crianças e adolescentes casando em 2017, o número de uniões infantis no Brasil ainda é grande. Entretanto, a quantidade de matrimônios vem caindo desde o início da série histórica do IBGE, em 2003.

Naquele ano, se casaram 155.832 pessoas com menos de 19 anos, dos quais, 12,038 uniões ocorreram na Bahia. Quatorze anos depois, em 2017, o valor caiu 20,7% na país e 35,5% no estado, para 123.473 e 7.757, respectivamente.

A Supervisora de Disseminação de Informações do IBGE, Mariana Viveiros, aponta que a redução no número de casamentos infantis se deve ao maior acesso das meninas à educação e a mudança nos padrões que a sociedade impõe às garotas.“As meninas se casarem cedo é uma questão feminina que tem a ver com uma cultura. Já foi muito mais importante e vem caindo porque as mulheres estão estudando mais. Não se vê mais o casamento como um rito de passagem para as meninas”, esclareceu.A idade média dos casamentos heteronormativos também vêm caindo desde 2003. A Supervisora de Disseminação de Informações do IBGE afirma que a idade da união aumentou, mesmo entre as crianças e adolescentes.

“A gente também sabe que [o casamento infantil] é um fenômeno muito associado a um baixo nível de instrução. A gente vê que os indicadores educacionais melhoram e percebemos um envelhecimento na idade ao casar”, explicou.

Em 2007, a mediana para os homens selarem os laços era de 29 anos e para as mulheres de 26. Dez anos depois, os dados mais atualizados demonstram que a média dos homens se casam com 30 anos e as mulheres tendem a se casar aos 28.

*Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier