Cavalo Marinho: polícia indicia dono, engenheiro e comandante por homicídio

Acidente deixou 19 mortos e 74 feridos; investigação durou oito meses

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  • Gil Santos

Publicado em 12 de abril de 2018 às 11:48

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/Arquivo CORREIO

A Polícia Civil indiciou o proprietário, o engenheiro e o comandante da lancha Cavalo Marinho I pelo acidente que matou 19 pessoas e deixou outras 74 feridas em agosto do ano passado.

Os três foram indiciados por homicídio culposo (quando não há a intenção de matar), e lesão corporal culposa. O inquérito foi encaminhado para a Justiça na última terça-feira (10). A pena prevista para cada um dos homicídios é de até três anos, além de um mês a um ano de reclusão por cada lesão corporal

Os resultados do inquérito civil foram apresentados pelo titular da 24ª Delegacia (Vera Cruz), Ricardo Amorim, e a diretora do Departamento de Polícia Metropolitana (Depom), Fernanda Porfírio, na manhã desta quinta-feira (12) na sede da instituição, no bairro da Piedade, em Salvador.

O inquérito policial seguiu a linha do que havia sido divulgado pela Marinha, em janeiro, indiciando os mesmos responsáveis pelo acidente. A polícia não responsabilizou nem a Marinha nem a Agerba (agência estadual que regula os serviços de transporte na Bahia).  Pai carrega corpo do filho após acidente (Foto: Arquivo CORREIO) A participação do comandante da lancha, Osvaldo Barreto, no acidente foi um dos pontos mais discutidos desde que a tragédia aconteceu. Em janeiro, a Marinha havia responsabilizado o piloto e disse que ele agiu com imprudência. Dois meses depois, um relatório do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) afirmou que o comandante era, na verdade, uma vítima.

Os auditores argumentaram que não foi dado ao piloto os instrumentos necessários para analisar os riscos da viagem, como informações sobre a meteorologia, por exemplo. Comandante durante atendimento com psicólogo (Foto: Divulgação CL/ Arquivo) Nesta quinta, a polícia concordou com a Marinha sobre a responsabilidade do piloto. Disse que ele agiu com imperícia, e que poderia ter se recusado a fazer a travessia, ou retornado para o porto de Mar Grande quando percebeu que as chuvas e as ondas ficaram intensas. Além disso, o delegado Amorim afirmou que Osvaldo optou por seguir à direita do farol, onde as ondas são mais fortes, fazendo, portanto, uma rota mais arriscada para a embarcação e os passageiros.

"Ele foi indiciado em virtude de ter saído do porto de Mar Grande com uma embarcação da qual ele tinha ciência que era instável, que era uma embarcação que poderia causar algum tipo de risco para os passageiros e para ele. E pelo fato de ele ter utilizado uma rota que não era a mais segura, colocando a embarcação e os passageiros em uma situação de risco", disse.

Foram oito meses de investigação. No inquérito, a polícia ouviu 135 pessoas, usou os laudos do Departamento de Polícia Técnica (DPT), da Marinha, dados de meteorologia, e o relatório dos auditores do MTE, apesar de as consiredações sobre o comandante não terem sido aceitas. 

Confira como aconteceu o acidente:

O delegado contou que, um dia antes da tragédia, Osvaldo conversou com o proprietário da lancha e pediu para trocar de embarcação. O comandante argumentou que o tempo estava mudando, e que não queria fazer a travessia na Cavalo Marinho I porque a considerava instável demais. O patrão disse que não havia outra embarcação disponível e encerrou a conversa.

A lancha deixou o Terminal de Mar Grande às 6h30, sem chuva. Mas começou a chover cerca de 10 minutos depois. Para a polícia, esse foi um dos pontos cruciais."Caberia a ele (comandante) avaliar as condições e retornar para o porto, o que ele não fez", concluiu o delegado.Sobre as acusações de omissão de socorro por parte dos comandantes das outras duas embarcações que passaram pelas vítimas, o delegado disse que, de fato, duas lanchas passaram pelo local, mas que a visibilidade estava ruim. Além disso, a maré e o vento fortes arrastaram as vítimas cerca de 150 metros do local do acidente, por isso, eles não foram vistos. 

O CORREIO ainda não conseguiu contato com os três indiciados.  Delegado passou oito meses investigando o caso (Foto: Alberto Maraux/ Divulgação) Engenheiro O engenheiro naval Henrique José Caribé Ribeiro também foi indiciado pelo acidente. Segundo a polícia, o laudo que ele encaminhou para a Marinha sobre a Cavalo Marinho I, antes do acidente, não condizia com a realidade da embarcação. Acreditando que as informações estavam corretas, a Marinha liberou a lancha para navegação.

Henrique José disse para a polícia que cometeu um erro de cálculo, mas que isso não foi decisivo para o acidente. O delegado e a Marinha discordaram. Para eles, os números corretos teriam deixado claro que a embarcação estava instável, ela não teria sido liberada para navegação e o acidente não teria acontecido. Maioria dos mortos estava no porão da lancha (Foto: Arquivo CORREIO) Já o proprietário da CL Transportes Marítimos, Lívio Garcia Galvão Junior, foi quem mandou instalar os pesos extras que foram encontrados pelos peritos na embarcação. Segundo a polícia, ele alegou que fez a alteração a pedido de alguns comandantes que pilotaram a Cavalo Marinho I.

Os funcionários disseram para Lívio que estavam tendo dificuldades para manobrar a embarcação no terminal de Mar Grande. Na hora do acidente, os pesos, que não estavam presos, rolaram e ajudaram a desequilibrar a lancha.

"Nós indiciamos o engenheiro pelo fato de ele ter realizado cálculos de forma errônea, atestando como apta a embarcação que não estava apta para realizar essa travessia. E, no caso do proprietário da empresa, nós o indicamos por ter instalado pesos de lastro de forma irregular e não ter comunicado à Marinha esse fato, o que causou aumento da instabilidade da embarcação na travessia, acabando por causar o acidente com a Cavalo Marinho I", contou o delegado.

No total, 74 pessoas tiveram lesão corporal, duas delas graves, além de 19 mortos. A polícia descartou a história da adolescente desaparecida porque não foi encontrado nenhum familiar da suposta vítima. No total, 19 pessoas morreram (Foto: Arquivo CORREIO) Acidente O acidente aconteceu no dia 24 de agosto, em uma manhã chuvosa. A lancha Cavalo Marinho I saiu do terminal de Mar Grande, na Ilha de Itaparica, em direção ao Terminal Náutico, no Comércio, em Salvador. Alguns minutos depois de deixar o atracadouro, a embarcação virou na Baía de Todos os Santos.

Havia 124 pessoas a bordo e os sobreviventes contaram que uma onda gigante fez a lancha tombar.

Havia coletes suficientes para todos os passageiros, mas eles não estavam usando, nem foram orientados a fazer isso. As balsas auxiliares também estavam de acordo com a legislação, mas nem todas foram usadas porque estavam amarradas na hora do acidente.

Após o acidente, o serviço de travessias foi interrompido, mas retomou as atividades cinco dias depois. O Ministério Público Estadual (MP-BA) pediu que a travessia entre os dois municípios fosse suspensa até que a segurança e a eficiência do serviço fossem garantidas, mas não foi atendido pela Justiça.

A Polícia Civil e a Marinha iniciaram inquéritos para investigar o caso, e nos meses seguintes sobreviventes e familiares das vítimas fizeram vigílias, protestos e manifestações cobrando celeridade da apuração do caso. Corpos ficaram enfileirados na areia (Foto: Arquivo CORREIO) Marinha Cinco meses depois, no dia 23 de janeiro, a Marinha apresentou o resultado do inquérito que apurou as causas determinantes do acidente e as responsabilidades de cada parte. Foram considerados culpados o engenheiro responsável técnico pela embarcação; os proprietários da empresa CL Transporte Marítimo e o comandante da lancha. O engenheiro e os proprietários da empresa foram apontados por negligência. Já o comandante, por imprudência.

A Marinha afirmou que a Cavalo Marinho I não cumpria os critérios mínimos de estabilidade previstos, mas não era isso que diziam os documentos emitidos pelo engenheiro responsável técnico.

Segundo o documento da Marinha, entre maio e junho de 2017 a empresa instalou pedras de lastros que pesavam 400 quilos no convés. Eles não estavam fixados, ficavam apenas encaixados entre as cavernas, e foram instalados sem acompanhamento técnico. Essa obra comprometeu a estabilidade da embarcação, mas não foi percebida pela Marinha porque aconteceu depois da vistoria, realizada no 20 de abril. Marinha divulga o laudo, em janeiro (Foto: Arquivo CORREIO) Durante a viagem, as pedras de lastro se deslocaram para um dos lados e fizeram com que a lancha ficasse mais inclinada, diminuindo a estabilidade e possibilitando que ela virasse. A Marinha entendeu que houve negligência por parte da empresa ao fazer essa obra e, como o engenheiro responsável disse que desconhecia a instalação dos lastros, o órgão disse que também houve negligência da parte dele. O nome do engenheiro responsável técnico não foi divulgado na época.

Para a Marinha, o comandante da embarcação errou ao seguir em direção ao banco de areia, por conta dos ventos, da maré e das ondas. O relatório afirma que se ele evitasse a região, poderia minimizar os efeitos, ou poderia retornar ao terminal e aguardar.

No dia 27 de janeiro, familiares das vítimas do acidente fizeram um protesto pedindo por justiça e aos gritos de “Tragédia anunciada é crime”. De acordo com os sobreviventes, um dos motivos da manifestação foi o resultado do inquérito divulgado pela Marinha dias antes, que apontou três culpados: o engenheiro técnico e o dono da empresa, por negligência, além do comandante da embarcação, por imprudência.

MTE No dia 19 de março, auditores da Superintendência Regional do Trabalho na Bahia (SRT/BA), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), apresentaram o resultado de um estudo sobre o acidente. O relatório apontou que vários órgãos foram responsáveis, direta ou indiretamente, pela tragédia.

Segundo os auditores, a empresa dona da lancha deixou de cumprir pontos do contrato e os órgãos competentes não fiscalizaram. Eles listaram dez condições que contribuíram para o naufrágio e outras duas que agravaram o acidente. Um dos pontos aponta que a embarcação apresentava apenas uma saída para os passageiros no convés inferior - o que dificultou a fuga.

Já a falta de treinamento dos tripulantes e a demora na chegada do resgate foram destacadas como fatores que não contribuíram diretamente para o naufrágio, mas que agravaram as consequências.

Os auditores disseram que a CL Transporte Marítimo, dona da Cavalo Marinho I, cometeu quatro erros: fazer alterações que afetaram a navegabilidade da lancha, não informá-las à Marinha, não investir em novas embarcações e não informar sobre condições meteorológicas aos comandantes.

O relatório responsabiliza o governo do estado pela falta de dragagem e desobstrução do canal marítimo de acesso ao atracadouro de Mar Grande, que estavam previstas em contrato, não foram cumpridas e impossibilitaram a renovação da frota. Havia 124 pessoas à bordo (Foto: Arquivo CORREIO) Indenizações No dia 28 de março, a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE) informou que a Agerba é a responsável por fiscalizar as empresas que realizam a travessia, e por isso será incluída na ação que pede indenização para as vítimas da tragédia. A decisão foi tomada pelo órgão após a Justiça não encontrar bens em nome do proprietário da CL Transporte Marítimo, Lívio Garcia Galvão Junior. O valor pedido será estabelecido na audiência de conciliação, que ainda não tem data para acontecer, ou determinado pelo juiz.