Ciclista morta no RN tinha medo de pedalar em ladeiras e sonhou que caía no mar

Alexia Suelen tinha se juntado ao grupo no início de maio; ela trancou o curso de Psicologia e sonhava chegar, pelo menos, até a Amazônia

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  • Thais Borges

Publicado em 22 de junho de 2017 às 15:59

- Atualizado há um ano

A jovem ciclista baiana Alexia Suelen Alves dos Santos Van Pettens, 24 anos, atropelada e morta no Rio Grande do Norte, era tida como um espírito livre por amigos e parentes. Era da natureza que gostava, dizem. Cansada de viver em uma ‘cidade de pedra’ e de sentir que não se encaixava mais em sua vida em Salvador, Alexia embarcou em uma viagem de bicicleta rumo ao Alasca, nos Estados Unidos.

Com um grupo de outros ciclistas, queria conhecer a aurora boreal e, no caminho, conhecer a si mesma. Mas ela sofreu um acidente na ponte Newton Navarro, no último dia 14, em Natal (RN), e no sábado (17), Alexia teve morte cerebral devido a um traumatismo craniano. O corpo dela foi cremado nesta quinta-feira (22).Alexia estudava Psicologia na Ufba. Trancou a faculdade pouco antes da viagem (Foto: Acervo Pessoal)No dia anterior ao acidente, Alexia tirou um tempo para meditar próximo a um rio. Estava com um caderno – seu diário de viagem, que a acompanhou durante todos os dias. Depois de meditar e escrever, ela voltou ao grupo. “Pediu para abraçar cada um. A gente se abraça, mas esse não era um abraço comum. Era muito intenso, muito demorado”, contou a estudante Dayana Gabrielly, 19, pouco antes de cerimônia de cremação, no cemitério Jardim da Saudade, em Brotas. Ela era uma das integrantes do grupo que viajava com Alexia. Antes do velório, a família respeitou um desejo antigo da jovem: que seus órgãos fossem doados.

A verdade é que Alexia não sabia se iria mesmo pedalar até o Alasca. “Ela tinha o desejo de ir até onde o coração deixasse, mas ela falava sempre que a vontade dela era ir para Amazônia. Ela dizia para a gente que, se chegasse lá e sentisse que era o lugar dela, ia ficar lá”, contou o terapeuta Luiz Ribeiro, 36 anos, também membro do grupo. Alexia fez um pedido à mãe, naquele dia 14 – o mesmo do acidente. Pediu que a mãe se programasse para encontrá-la em dezembro, onde quer que estivesse. E, mesmo assim, não voltaria em dezembro: só voltaria depois que conhecesse Machu Picchu, no Peru, já parecendo conceber a ideia de ir além da Amazônia. A mãe, Solange Alves, ficou surpresa. Quando saiu de Salvador, Alexia disse que passaria três meses viajando. 

Mesmo assim, Solange combinou com a filha que iria se programar para vê-la em Machu Picchu. Juntas, conheceriam a cidade dos Incas. Depois, Alexia decidiria se continuaria a jornada rumo ao Alasca ou não. “Pelo que eu conheço dela, creio que ela ia”, garantiu a mãe. O grupo de ciclistas estima que a viagem pode levar até três anos só de ida, além de outros três anos para a volta. Cerimônia de cremação levou amigos e familiares da ciclista ao Jardim da Saudade(Foto: Marina Silva/CORREIO)A decisão de viajarEssa viagem, para Alexia, seria um encontro espiritual. Estudante do curso de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba), tinha apenas mais três semestres até se formar. Os pais contam que ela adorava o curso. A instituição, inclusive, divulgou nota lamentando a morte da jovem.

Mesmo assim, Alexia não estava feliz. “Todo jovem tem uma cabecinha assim e ela não se colocava nesses padrões que a gente quis, de fazer faculdade, de trabalhar. Ela queria voar mais, queria liberdade. Por isso, gostava tanto de viajar”, contou Solange. Em entrevista a um canal de televisão do Rio Grande do Norte, Alexia revelou como se sentia. “Por mais que tudo na minha vida estivesse dando certo aos olhos de outras pessoas, dentro de mim, eu não me sentia bem com aquilo. Sentia tristeza, me sentia infeliz”. Ela morava no bairro de Nazaré com a mãe e a avó. Estava sempre sorrindo, de acordo com a pedagoga Selma Andrade, 49, vizinha dela. “Ela estava sempre de bem com a vida. Mesmo que estivesse triste por dentro, o sorriso dela era o mais marcante.”

Alexia não começou a viagem junto com o grupo – batizado de Tribo Totipah. A jornada dos outros cinco integrantes começou no dia 7 de fevereiro. Na despedida do escritor Marcelo Nogueira, 32, um dos fundadores do grupo, dias antes do início da viagem, Alexia parecia se interessar pelo projeto, mas sentia que não estava pronta. Meses depois, acompanhando o trajeto do grupo pelas redes sociais, ela viu que era o momento. “Ela entrou em contato comigo porque disse que não estava aguentando mais. Nossa tribo é dos desencaixados, os excluídos da sociedade. Ela se sentia como a nossa tribo e queria ter espaço para se manifestar como ela era. Ser amada por quem era e, nesse processo, descobrir quem era. Não era a primeira vez que uma pessoa em um estado muito crítico de emoção chega em nosso contato. Vêm pessoas até falando em suicídio”, explicou Marcelo. Os dois se conheceram através de um amigo em comum. 

Para completar, mais um sonho que pareceu definir o destino de Alexia. Quando já pensava em viajar, uma amiga contou que tinha tido um sonho com ela. “A amiga disse que tinha sonhado com ela andando de bicicleta, indo em direção a uma luz imensa. Então, ela disse: ‘esse era o sinal que eu queria para viajar”, lembra a mãe da jovem. 

Alexia encontrou o grupo no início de maio, em Tambaba, próximo a João Pessoa (PB). De lá, seguiu viagem com o grupo, que era heterogêneo: Luiz, Marcelo e Alexia eram de Salvador, mas há, ainda, Dayana, de Recife (PE) e Fagner, do Ceará. Um dia antes de Alexia sofrer o acidente, outro integrante – Jean, do Rio Grande do Sul – havia se juntado à trupe. Alexia se juntou à Tribo Totipah no início de maio deste ano (Foto: Reprodução/Facebook)Não havia rotina. Em certos dias, pedalavam 60 quilômetros. Começavam ao raiar do dia e iam até o final. Em outros, pedalavam 15 quilômetros. Já em outros momentos, não pedalavam. “Passei cinco dias com ela, quando fui visitar meu filho. Fiquei com uma ligação muito forte, porque ela me abraçava muito, chamava de ‘tia’. Ela era vegetariana e eu sempre fazia a comida deles, então fazia a dela primeiro. Ela era muito feliz, cantava muito, cantava coisas positivas”, lembra a mãe de Marcelo, a microempresária Maria Selma Nogueira, 56. 

O acidenteEm seu diário, Alexia costumava escrever poemas. Falava de seus sentimentos sobre a viagem. Depois do acidente, o caderno foi entregue à mãe dela, dona Solange. “Ela falava muito do que estava acontecendo, dos locais que ia, do cansaço. Dizia que era muito cansaço, mas era confortante, porque via lugares lindos e pessoas atenciosas, super acolhedoras. Ficou maravilhada porque não esperava isso. Na cidade grande, é cada um por si”. Nesse caderno, ela também descrevia seus sonhos, assim que acordava. O sonho da madrugada do dia 14, contudo, mais parecia uma premonição. Quando acordou, Alexia desenhou uma montanha – que, segundo os companheiros de viagem, tinha o mesmo formato da ponte onde sofreu o acidente. “No sonho, ela estava na montanha quando uma mulher veio e empurrou ela. Então, ela caiu no mar. Ela contou, ainda, que eu aparecia e perguntava: ‘por que você está chateada? Você não ia cair no mar mesmo?’. Ela dizia que sim, mas que não queria cair de roupa e tênis. Não queria que fosse repentino. Era como se fosse uma mensagem para, quando acontecesse, confortasse o coração”, relatou Marcelo.

Aconteceu no dia seguinte, por volta das 18h. O grupo tinha acabado de dar uma entrevista a uma rede de televisão local e subiu a ponte. A ideia era pedalar até a praia de Santa Rita, no mesmo Rio Grande do Norte. Menos experiente no pedal, Alexia pediu para ser a última, na ciclofaixa. Como o espaço era estreito, não podiam ir lado a lado – apenas formando uma fila, um atrás do outro. Menos experiente, Alexia não gostava de ladeiras. Tinha sofrido uma queda um dia após encontrar o grupo(Foto: Reprodução/Facebook)Ela era tida como a mais cuidadosa do grupo. Um dia após ter encontrado a trupe, em sua primeira bicicletada, Alexia sofreu uma queda. Se ralou, quebrou um dedo. Mas não encarou como se isso fosse um sinal para desistir. Pelo contrário: acreditou que aquilo era o início. Mesmo assim, não gostava de ladeiras - como era o caso da ponte. Alexia teria sido atropelada por uma moto na ciclofaixa. Para fugir de um radar de até 50 km/h, o motociclista invadiu a faixa, bateu na bicicleta e fugiu. “Uma mulher que viu chegou até nós e disse que uma moto tinha atropelado nosso amigo. Como Alexia estava com o cabelo curtinho, ela achou que fosse um rapaz. Quando voltamos para olhar, ela estava caída”, lembra Marcelo. 

A jornada continuaA ciclista ficou internada até o sábado no Hospital Monsenhor Walfredo Gurgel, em Natal, até que teve a morte cerebral constatada. A polícia potiguar investiga o caso. O diretor da Polícia Civil da região, o delegado Júlio Costa, não atendeu às ligações do CORREIO.O pai de Alexia, Luciano Van Pettens, fez um apelo por mais educação no trânsito. “O que me irrita nessa situação toda é que isso não aconteceu porque o cara acordou de manhã e falou: ‘hoje quero matar um’. Ele achou que a vida de minha filha valia um pouco menos do que a multa que ele pagaria. Isso significa que ele podia ter evitado tomar essa multa simplesmente andando dentro da regra”. 

Luciano, que contou que é motorista de Uber nas horas vagas, lamentou a irresponsabilidade de muitos motoristas no trânsito. “O ciclista é pequeno em relação ao tamanho de carro e ônibus e até da própria moto. Está óbvio que minha filha tinha algum tipo de missão e que esse cara foi, no máximo, um instrumento. Mas ninguém é instrumento se não permitir que seja. O motorista precisa aprender a ser responsável, aprender que as leis estão lá para dizer que, dessa maneira, a outra pessoa pode não morrer por sua causa”.

A Tribo Totipah deve retornar ainda nesta quinta-feira (22) a Natal. Um dos integrantes continua lá, aguardando a chegada do grupo e tomando conta da cachorra que os acompanha, batizada de Aurora. Eles devem continuar a viagem até o Alasca – ou até onde quer que queiram chegar. 

Por aqui, os pais de Alexia são os maiores incentivadores de que continuem a jornada. “Não se honra a quem não pode continuar andando para trás. A gente honra as pessoas que a gente ama seguindo em frente. Se eles querem honrar minha filha, agora eles vão ter que chegar lá”, declarou Luciano.