Cidade Baixa, por Lara Mangieri

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Publicado em 9 de abril de 2021 às 21:34

- Atualizado há um ano

Do alto da cidade havia um homem. Entre pressas, urgências de toda ordem, buzinas e sirenes, lá ele estava. Observava a sucessão das horas entre os passos de tantos outros a sucederem-se na paisagem de concreto úmido a refrescar-lhe os pés.

No ponto de ônibus, avistava os trabalhadores do dia corrompidos pelo cansaço - haviam de chegar a tempo… para que? A vida da modernidade media-se pela produtividade, pela avidez dos sonhos que se refletiam em vil metal. Vendedores de frutas dispersavam-se na calçada, disputando espaço e sobrevivência com os floristas. Em dias frios não se compra flor, desmancham-se pétalas. Restavam os tomates e as maçãs, que se confundiam nas bancadas molhadas pelo suor da luta e pelas lembranças da chuva que cessara.

O dia era cinza, como todos os outros. Via o horizonte pincelado pelo azulado plúmbeo a coincidir com o asfalto, tornando a fotografia da turista um retrato do tédio que invadira a cidade. Hoje não vai ter por do sol - por ora, até conseguira ouvir o lamento da moça de cabelos trançados a adentrar o elevador. Uma mãe segurava firme a mão da criança encostada nas paredes de vidro que espelhavam o grande mercado e a praça vazia a tocarem os pequeninos dedos. Havia ali um silêncio, o das cores vibrantes, das músicas das tradicionais rodas de capoeira, dos banhos de alfazema e bençãos, das orações dos devotos de Nossa Senhora da Conceição da Praia, dos peregrinos de branco de Nosso Senhor do Bonfim. Ficara apenas a sombra dos rostos em fila, encobertos, só os olhos longínquos à vista, aguardando pela histórica e teleférica descida até o outro patamar da cidade, ainda digna de cartão postal.

O que haveria de dizer aos filhos desta terra, já marcados pela doença e pelos sacrifícios? Haveria perdão que o salvasse das inevitáveis escolhas, das loucuras e agonias que faziam a carne tão frágil como   sua humanidade? Rezariam pelo seu destino mudo, em segredo, sem medo das acusações divinas? Teria, Deus, misericórdia e amparo para sua alma? A brutalidade dos pensamentos carecia de compaixão - lágrimas não mais o sufocariam, não existiria dor diante do suave encontro. Seria serena a pausa, sem piedade ou remorso, apenas pela liberdade de não mais ser este ser humano esguio e gélido, inerte, desengonçado com a Vida. Com ela já tivera, aliás, inúmeros contratempos - dera seu basta à relação toxica, omissa, à infidelidade com que ela o tratara ao trair-lhe a confiança do sonho, da incapacidade de torna-se alguém. Estava desfeito o acordo, o casamento de muitos anos sofridos aturando a própria ausência, a solidão do desencontro consigo mesmo. Encontraria-se com um Vazio que lhe desse nome e resignação definitiva a um Deus que desenhara em si como a face de sua Mãe, com o singelo sorriso do amor a devolver-lhe o alívio ao estender-lhe a mão. Seria, em si, seu abrigo e seu refúgio, ainda que tivesse que enfrentar a história de uma identidade forjada estampada na capa dos jornais.

Tem muita gente por aí afora - haverão de seguir, de lutar, de vencer. De viver ou morrer, não mais importa. Os dias que agora conhecemos são feitos de números, seria “um a menos”. Talvez passasse desapercebido pela força e audiência da peste que nos assola, talvez ninguém sequer notasse seu desaparecimento, talvez sequer existisse um grito. Seria bom assim, cair sem alardes. E quando não mais estivesse “aqui”, sairia de fininho, com a delicadeza que conhecia bem, sem olhar para trás, para aquele corpo que há muito não mais o pertencia. Se ainda lhe fosse dado um desejo… apenas um banho de pétalas brancas perfumadas, um lençol azul a envolver-lhe como o manto de Maria e uma elegia, em sussurro, assim, sem apelos, a preservar-lhe a dignidade. Se pudesse, entraria no mar, a ele entregar- se-ia … pensaria ter paz como parte do infinito , no fundo do oceano.

Então novamente a chuva, como um sinal. O frescor sob os pés, a roupa escorrendo na pele, abrindo asas. Sem esforços, sem desespero, apenas um voo. Chegara a hora. Leve como a brisa ventando-lhe o caminho, o corpo leve, a flutuar. Até pousar o chão, como uma pena, suave; e então integrar-se ao vermelho das frutas molhadas na calçada, uma mistura de sangue e extrato, encontrando o caminho das águas.

Quando as câmeras apontadas para o céu, dispersas em todas as esquinas, desligaram-se, uma mulher de turbante branco e colares de Gandhy aproximou-se. Fechou os olhos, dedicou-lhe uma Ave Maria e, em respeito e em silêncio, removeu os panos que envolviam seus cabelos negros e os colocou na face desfigurada do homem, a salvar- lhe a digna memória. Um florista lhe cedeu uma rosa, a mais bela do cesto. Com afago, ela a colocou em suas mãos pálidas, presa às contas azuis do colar que tirou do próprio peito. E lhe disse: ide em paz, meu filho.

Lara Mangieri, A um homem, in memoriam