(Co) VIVER? Coronavírus vem nos ensinar o real valor de sermos humanos

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  • Da Redação

Publicado em 1 de abril de 2020 às 17:32

- Atualizado há um ano

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Está escrito: “Deus ordenou: você pode comer de todas as árvores do jardim, mas não da árvore do conhecimento do bem e do mal”. Essa passagem bíblica, extraída do livro do Gênesis, coloca-nos frente ao questionamento filosófico que transcende a perspectiva religiosa: quem de nós saberá, nesses tempos de epidemiologia do medo, qual o melhor caminho a seguir? 

Há alguns meses a pandemia do coronavírus tem nos apresentado, de forma inédita neste século, uma nova perspectiva para a globalização. Uma doença sem fronteiras, ao disseminar-se entre pessoas, governos e instituições, revela - nos aquele que consiste no maior dos impactos: a ameaça aos sistemas de saúde, às estruturas políticas e econômicas, às organizações sociais e, essencialmente, à concepção de humanidade como até então a conhecemos. 

Nesse percurso, sob o ranking de óbitos e matematização das esperanças, vimos a histeria coletiva propagar-se na chamada era das fake News, alicerçada no paradigma apocalíptico que, lá no fundo, parece nos dizer, independente de crenças, que o fim está próximo e “salve-se quem puder”! Ora, não foram raros os exemplos caricaturais das corridas aos supermercados e farmácias, em prol do estoque de produtos para um futuro que ninguém sabe ao certo se e quando chegará. Nesse contexto, sob o risco imaginado da carência de recursos, deflagramos uma luta individual pela sobrevivência sem perceber, todavia, que ninguém se salvará sozinho. 

Do ponto de vista biológico, historicamente o Darwinismo nos ensinou que a evolução - e leia-se também: a preservação da espécie - está atrelada à adaptação às adversidades, o que inclui a solidariedade e colaboração holística, contrapondo- se à “ lei do mais forte”. A real compreensão evolutiva alerta-nos, portanto, o valor da coletividade em detrimento do individualismo, mostrando- nos, mais uma vez, que de nada adiantará nos esquivarmos da corresponsabilidade pelo que urge e já acontece. Isso implica, portanto, a redefinição de prioridades em todas as instâncias, sobretudo quando estamos todos conectados e sequer podemos nos dar as mãos. 

Cabe ressaltar, então, que as nossas urgências de bens, de definições políticas e financeiras, bem como de reabilitação, cuidado e cura também devem ser vistas como uma necessidade civilizacional. Isto é: um vírus vem nos ensinar o real valor de sermos humanos. Nosso isolamento físico, um contraponto à virtualização dos afetos, nos impõe a necessidade de criar novas formas de interação social, de expressão e cultura. Ao homem é inerente o contato, e quando esse se torna um elemento de vulnerabilidade, cabe-nos ressignificar a importância outrora esquecida do trivial, do comum e do cotidiano. 

A despeito da magnitude do problema, seja no âmbito individual seja no coletivo, ainda persistem os embates ideológicos não promissores, os quais dificultam o diálogo decente que a situação merece. É hora de política sim, mas daquela que tem poder administrativo, representativo, dialógico, ético. Não se trata da politicagem maniqueísta que nós, brasileiros, infelizmente conhecemos bem. O momento nos convoca a superar a polarização e a culpabilidade: não temos tempo para sensacionalismo, tampouco “ pagar para ver”. Aliado a isso, o modelo neoliberal apresenta-se, no mínimo, insuficiente, na medida em que precisamos de um Estado de Bem Estar Social capaz de assegurar, a toda população, condições de enfrentar o período de escassez e a pandemia. Nisso concerne o princípio da equidade: tratar com desigualdade os desiguais, o que implica, na prática, a adoção de medidas protecionistas e benefícios sociais, de uma economia sustentável. 

A despeito dos cunhos políticos, antes mesmo que se coloque novamente à tona o princípio do “ao invés de dar o peixe, ensinar a pescar”; lembremos que, se não pelo entendimento humanitário, a implantação de tais estratégias também responde ao mesmo anseio econômico que prega a existência de consumidores e trabalhadores, da rede de produção que “não pode parar”. Obviamente o fornecimento de matérias primas e serviços, da atividade laboral e tudo que dela deriva, incluindo o pão de cada dia, tem importância fundamental, mas o que será realmente prioritário tanto quanto a vida? O que se propõe, desse modo, longe de ser a estagnação, é a construção gradativa de um novo modus operandi que proporcione segurança a todos a medida que o sistema de saúde possa se estruturar para atender as demandas que irão surgir, inexoravelmente. Ainda que, do ponto de vista epidemiológico, o risco populacional seja maior que o individual, isso é, de forma simplória, mesmo que alguns de nós não tenham fatores de risco evidentes para a infecção pelo Covid 19, estamos interligados e, nesse movimento, todas as partes do todo importam. Cabe-nos, pois, ressaltar o valor da Incerteza como bem explica o professor Dr Luís Cláudio Correia, e adotarmos uma postura probabilística que inclui fortalecer medidas de prevenção, ainda que possam parecer extremistas, tendo em vista que lidamos com um cenário novo cujo risco é coletivo. Nesse aspecto, também a medicina tem humildemente algo a nos ensinar: a não maleficência - antes de tudo, não cause o mal; o que ressalta ainda mais a necessidade de nos basearmos em evidências científicas para tomada de condutas que afetarão a todos. 

Na mesma passagem bíblica inicialmente mencionada consta: “Javé Deus tomou o homem e o colocou no Jardim do Éden, para que o cultivasse e guardasse”. Embora ainda não saibamos os frutos das novas escolhas, devemos construir a dignidade para arcar com os dissabores, as consequências. Já que inevitavelmente seremos todos afetados, nosso empenho se alia à redução dos danos, à proteção do que temos de mais nobre: a existência e qualidade da vida humana, que sobrepõe-se mesmo à liberdade individual. Cada qual saberá por quais caminhos anda a própria fé, mas seja lá qual for a crença, o mundo nos mostra que a salvação não é uma decisão pessoal, mas uma ação coletiva. 

*Lara Mangieri é médica e escritora nas horas vagas