‘Coisa de brau’: Ana Dumas lança livro sobre o termo controverso

Artista multimídia apresenta a obra digital com live no Instagram, neste sábado (10)

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  • Laura Fernades

Publicado em 9 de julho de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

O objeto de desejo da artista multimídia Ana Dumas, 58 anos, era aquele par de óculos de camelô, espelhado, colorido e barato. Mas o que fez brilhar seus olhos logo foi reprimido pela avó, durante um passeio pela rua Chile: aquilo “era coisa de brau”. Ana, então, perguntou o que isso significava e logo veio a explicação: “coisa de gente sem modos, de gente baixa, de gentinha”.      O impacto foi imediato, já que “o que ela queria dizer e não disse, é que, para ela, brau era coisa de gente preta e pobre”, relata a artista, em um dos trechos do livro Brau – Manifesto Brasileira Universal. A obra digital será lançada amanhã, às 20h, com live no Instagram (@manifestobrau) que tem participação da autora e mediação do artista visual Gil Maciel.      Ao contrário do que poderia parecer, porém, a fala da avó não a afastou. Pelo contrário, ela sentiu uma atração imediata por aquela estética que deu origem ao estudo apresentado no livro e que até hoje carrega em si e em seu carrinho multimídia. “Quando vi a estética pop, pensei: ‘gente, eu sou isso’. Houve uma identificação grande”, confessa Ana. Foi aí que seus olhos se voltaram para a cena brau de Salvador.      Principalmente quando Carlinhos Brown apareceu com o movimento percussivo e estético Vai Quem Vem pelas ruas do Candeal. “Me apaixonei totalmente e resgatei essa curiosidade em mim, mas com o olhar de pesquisadora, de tentar entender o que era aquele assunto recalcado no inconsciente coletivo”, explica a artista. O livro, portanto, é reflexo desse estudo que acontece desde 1997.     Mudança de pele Ana entrevista artistas desde a década de 1990, processo que ganhou fôlego em 2012 e em 2017, quando conversou com João Jorge, do Olodum; Vovô do Ilê; Adelmo Costa, do Apaches do Tororó; os cantores Paulinho Camafeu e Dão; e a antropóloga Goli Guerreiro, que assina o prefácio do livro. Foi assim que percebeu que o ‘brau’ não tinha ficado restrito ao visual de James Brown e dos Panteras Negras. “Ele foi mudando a pele”, conclui.      O livro reflete isso. Dividido em quatro tópicos, destaca as atualizações históricas que prepararam o imaginário das pessoas para “a insurgência do brau”. Além de abordar as mudanças que aconteceram entre os séculos XX e XXI, incluindo os avanços tecnológicos e as novas concepções de negritude, gênero e sexualidade, a obra fala sobre as mudanças no âmbito da moda e da cultura.       No segundo tópico, a autora aponta como essas transformações se fazem presentes no cotidiano de Salvador e, na terceira parte, mostra as diferentes caras que a cena brau teve ao longo das gerações.“O brau é também o rasta do Pelourinho, o pagodeiro da periferia, o coletivo Afrobapho e toda cena afrofuturista atual representada por nomes como Larissa Luz e Russo Passapusso”, diz Ana.  Por fim, no quarto e último tópico, o livro mostra como a performance brau está, na maior parte das vezes, direcionada aos homens negros. Além disso, Ana explica que a ideia do livro-manifesto está diretamente relacionada ao fato do termo ser uma estética preta marginalizada e, portanto, vista como algo pejorativo pela classe média nacional.     “Ganhou essa conotação pelo racismo. Uma coisa é você ser negro e ‘saber seu lugar, que é a África’. Outra coisa é ter o lugar no mundo, que a diáspora deu. O brau queria ser pop, misturava referências africanas com a cultura ocidental e dava um nó na cabeça da classe média”, alfineta, sobre a “insurgência estética”.     Cueca Nascida em Salvador, mas criada no Prado, extremo Sul da Bahia, Ana teve contato com a estética negra através das revistas compradas pelo pai, dos livros de história e das imagens do movimento Black Power. “Como para as pessoas do Prado sou bem misturada, essa negritude quem me deu foi Salvador”, agradece. Foi com esse repertório que compreendeu a resposta da avó, citada no início do texto.      “Como achei os óculos lindos e ela respondeu com aquilo, a clareza era mais visceral que racional. Sabia que era algo lindo, mas que sofria preconceito”, pondera Ana, que sempre se identificou com a contracultura e os movimentos rebeldes. “Fui fisgada e sou fisgada até hoje. Pra mim, esse trabalho envolve minha alma, minha história”, completa.      Isso inclui o fato de que, desde pequena, se vestia de um jeito livre. Sempre optou por usar cueca, por exemplo, por ser mais confortável, e roupas pouco tradicionais, o que virou motivo de impasse com a mãe. “Ela costurava minhas roupas e a gente brigava muito. Minha mãe queria o vestido de um jeito e eu dizia que não ia usar”, lembra.       “Acho que se tivesse nascido hoje seria trans, viu”, confessa a artista que era chamada de “macho-femme” pela mãe. “Jogava bola na rua e ela me botava pra dentro dizendo ‘vai pra casa, vai botar um vestido, vai brincar de boneca’”, conta a agitadora cultural. “Não à toa, hoje tenho um carrinho”, gargalha, fazendo referência ao seu carrinho multimídia inspirado nos carrinhos de café.      Risos à parte, Ana reforça que o livro contemplado pela Lei Aldir Blanc destaca a necessidade de estudar o termo “estético, controverso e real”. “Faltava falar desse estilo de uma forma aberta, com as quatro letras que carrega: b-r-a-u. Isso é fundamental nesse momento do mundo em que a gente discute o racismo a partir de novas referências”, conclui.