Conceição Evaristo sobre ABL: 'A gente tem de se submeter a essas audácias'

Convidada do Mulher com a Palavra, hoje, no TCA, escritora mineira fala sobre candidatura à Academia Brasileira de Letras

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  • Da Redação

Publicado em 29 de maio de 2018 às 06:10

- Atualizado há um ano

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Um dos nomes mais celebrados da literatura brasileira contemporânea, a escritora mineira Conceição Evaristo viu o reconhecimento crescente da sua literatura acompanhar a procura por seus seis livros publicados e também os convites para participação em eventos. Em Salvador, só no último ano, esteve nas concorridas mesas da Flicaixa e da Flipelô. Em outubro de 2016, participou da Flica, em Cachoeira, momento guardado com carinho na memória.

Logo mais, às 20h, ela retorna à capital baiana para abrir o terceiro ano do projeto Mulher com a Palavra, ao lado da rapper curitibana Karol Conka. O evento, que acontece na Sala Principal do Teatro Castro Alves, um dos maiores complexos culturais da cidade, já está com ingressos esgostados. “O grande público não me assusta, mas é uma responsabilidade muito grande. Eu sinto que as pessoas esperam muito de mim”, diz sobre o desafio prazeroso que é estar diante de uma quantidade cada vez maior de interessados sobre sua obra e trajetória. (Foto: Divulgação) Desde o início do mês, são eles quem têm encampado nas redes sociais a campanha #ConceiçãoEvaristoNaABL, que pede a ocupação da Cadeira 7 pela escritora. Em menos de vinte dias, 19 mil pessoas assinaram a petição online - quase o dobro da meta inicial.

Em texto assinado pela professora de literatura da Universidade Federal da Bahia, Denise Carrascosa, a petição questiona se a ABL “está preparada para compreender a necessidade de iniciar uma trajetória de reeducação em nossas formas de letramento” e lembra que o patrono da Cadeira 7, vaga desde a morte do cineasta Nelson Pereira dos Santos, é Castro Alves, “poeta que escreveu criticamente sobre a escravidão a uma distância segura de não tê-la conhecido de fato”. Nessa entrevista, ela confirma que vai submeter a candidatura à ABL, “na certeza de que a gente tem de se submeter a essas audácias”. “Se não tentarmos isso, nunca estaremos lá”. Conversamos há quase exatamente um ano, por conta da sua participação na Flicaixa. De lá para cá, foram muitos os eventos, publicações e prêmios em reconhecimento ao seu trabalho - algo que vem crescendo nos últimos anos, desde o sucesso de Olhos D’Água (2014). Como avalia esse movimento? Eu tenho certeza que o que mudou foi o lugar que a mídia tem me dado. E eu afirmo o tempo todo que esse lugar não foi ela quem construiu. Eu chego aqui como consequência de uma luta, de uma caminhada, dentro do movimento social negro. Meus primeiros leitores e leitoras eu conquistei dentro do movimento social negro, ainda nos anos 90, quando passei a publicar nos Cadernos Negros. Então, já havia um leque de leitores que me sustentava, que levava meus textos para a sala de aula, que estudava minha obra na academia.

Todos os eventos em que a senhora participou na cidade foram bastante concorridos. Hoje não será diferente e os ingressos já estão esgotados. A diferença é que é no TCA, o maior teatro da cidade. Isso lhe assusta, de algum modo? Normalmente eu vou confiante para esses espaços, até porque dificilmente tem alguém na plateia que gera um certo desconforto. Quando você se torna público, você tem de lidar com essas situações também. Mas mesmo quando sou contestada, as pessoas costumam ser respeitosas. A minha maneira de me relacionar é sempre dizer tudo que eu quero dizer. Sei fazer isso até quando vou contestar. Esse grande público não me assusta, mas é uma responsabilidade muito grande. Eu sinto que as pessoas esperam muito de mim. Eu sei que não posso chegar numa situação dessa e dizer abobrinhas. As pessoas têm uma expectativa diante do que eu vou falar. Conceição Evaristo ao lado de Taís Araújo no Prêmio Claudia, ano passado Dá pra citar uns cinco momentos de destaque nessa trajetória de reconhecimento? Teve a Ocupação Conceição Evaristo do Itaú Cultural, em São Paulo. A Flip também foi bem importante. Osprêmios Claudia, Bravo. O prêmio em reconhecimento ao conjunto da obra, que ganhei pelo governo do Estado de Minas Gerais. Mais recentemente o SIM pela Igualdade Racial. Todos esses acontecimentos me colocam em uma maior evidência, mas quem me sustenta mesmo é esse grupo de leitores, de pessoas ligadas ao movimento negro, anterior à mídia e a essa visibilidade.

E qual a sua expectativa para o evento de hoje? Eu acho que esse evento vai bombar. Karol tem idade para ser minha neta, então a gente vai congregar pessoas não tão jovens, como eu, mas também um público que vai ávido para encontrar Karol. Já estive com ela durante o Prêmio Bravo, ano passado, mas nunca participamos juntas de um debate como esse. Tem que ser um encontro bonito! E além de bonito, fértil.

Como a senhora recebeu esse movimento em torno do seu nome para a Academia Brasileira de Letras? Há algum incômodo com essa mobilização, que surgiu de forma espontânea nas redes sociais e tem conseguido pautar o debate? A mim não incomoda não, mas se incomoda a academia, isso eu não sei. A mim não incomoda, e mesmo que incomodasse, foi algo muito espontâneo. Quando tomei consciência, já estava na rua. A Flavia Oliveira, uma jornalista negra carioca, foi a primeira falar disso na sua coluna. Depois o Ancelmo Gois repercutiu. Depois outros jornalistas me procuraram, mas já tinha escutado as pessoas do movimento negro e outros leitores falando que o próximo passo meu era a Academia Brasileira de Letras. Quando isso era colocado num círculo pequeno, eu não refletia muito. Não entreguei ainda a carta de candidatura, porque não tive tempo de fazer. Mas em todo espaço que eu chego, as pessoas depositam essa expectativa. Eu me sinto também comprometida com essa expectativa, que tem me ajudado a refletir que a academia também é um espaço nosso. A literatura representa uma nação e a academia seria simbolicamente a guardiã  e a difusora dessa literatura. Nosso discurso literário especifica uma nação. Então, esse lugar é nosso. Vou me candidatar nessa certeza de que a gente tem de se submeter a essas audácias, se não tentarmos isso, nunca estaremos lá. Obras de Conceição Evaristo expostas em uma das salas da Ocupação Conceição Evaristo Itaú Cultural, realizada em maio do ano passado em SP (Foto: Divulgação) E, com uma agenda tão agitada, quando é o seu momento de escrita? O tempo da escrita para mim é quando o tempo me permite. Na madrugada, quando tem silêncio e minha filha está dormindo...Meu grande sonho de consumo é ganhar uma bolsa de criação. Estou com dois romances começados, um livro de crítica e de crônicas começados, tem a ideia de um de contos. Eu precisava de um tempo que eu parasse e ficasse só por conta da escrita. Estou precisando de um ócio criativo. Quando você para na frente de um computador, não quer dizer que as ideias estão surgindo necessariamente. O momento meu de escrita é aquele ainda que se dá quando o tempo permite. No meio das escritoras negras, eu desconheço alguma que esteja em situação diferente.

Com livros exigidos em vestibulares e essa possível entrada na ABL, a senhora pode vir a ser considerada canônica... A gente sabe quais são os espaços que definem o que é ou não é canône, o que é uma boa literatura e o que não é. São sempre as culturas hegemônicas que têm esse poder de escolha. Quando me colocam no cânone, eu fico me perguntando que cânone é esse. Já recebi críticas por estar almejando a ABL, mas não perco de vista que se me considerarem como cânone ou se eu chegar de fato à ABL, eu chego mantendo todas as minhas características e especificidades. Ninguém que acompanha minha postura do início até hoje pode dizer que estou amaciando o terreno. Não estou mesmo! Estou tendo essa lucidez de buscar essa coerência. Se eu sou canônica, se eu estou me tornando, eu estou me tornando através do meu projeto de literatura. Meu texto é marcado pela oralidade, que é algo que quero conservar, mas em nenhum momento esqueço que estou lidando com a arte da palavra. Se acharem o lugar dentro do cânone, isso não muda minha feição. É mais fácil o cânone mudar a feição dele para me acoplar, do que eu mudar a minha para me ajustar ao cânone. Eu não tenho dúvida que se eu chegar - se nós chegarmos, porque considero a minha ida para ABL seja uma conquista das mulheres e homens negros - todos se sentirão contemplados comigo lá. Vocês podem ter certeza que não sou só eu que estou chegando à academia. E meu desejo muito grande é que a gente possa chegar e fazer com que essa conquista se reverta em reflexão, em observação de outras mulheres negras que estão aí escrevendo...Nós produzimos tudo que qualquer ser humano produz: religião, teatro, dança, alimento, cura, festas.