Contra a barbárie, a beleza

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 9 de agosto de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Restos de um navio nazista afundado em 1944 chegaram à costa de Salvador na última semana. São fardos de borracha pesadíssimos, de uma embarcação que está submersa a mais de 6 mil metros de profundidade. Não deixa de ser uma coincidência inusitada: lembranças do passado mais tenebroso da humanidade ressurgindo justamente no Brasil de hoje.

Os fardos de borracha do navio alemão equivaleriam ao fardo enorme que temos que carregar. Nada, é claro, superou o nazismo, a maior descida do homem ao inferno. Mas é curioso como o arquiteto daquele processo de extermínio e destruição encontrou, em terras brasileiras, um herdeiro. Mais inepto, estulto e banal, mas nem por isso menos nocivo à ideia de civilização.

Não vamos, porém, nos estender mais uma vez sobre o pesadelo que estamos vivendo. Isso nos deixa tristes, exauridos, acabrunhados. Ao invés de remoer a barbárie, por que não nos debruçarmos sobre o que a humanidade produziu de melhor? Passemos, portanto, à beleza.

Na abertura do filme A Última Nota, de Claude Lalonde, a jornalista e ex-estudante de música Helen Morrison, personagem de Katie Holmes, discorre sobre o significado da música para a existência: “Nietzsche uma vez disse que, sem a música, a vida seria um erro. Filósofos alemães costumam exagerar, mas isso faz sentido. Eu sei que, sem a música, a minha vida teria sido incompleta de uma maneira fundamental, como se eu não tivesse amigos ou lembranças.”

Transponho essa afirmação para a arte como um todo. Uma vida sem arte é uma vida mutilada. Como prescindir de um Noturno de Chopin, uma pintura de Da Vinci, um romance de Dostoiévski? Como não se embrenhar na imensa e inesgotável fonte de conhecimento que atende pelo nome de cultura? Devemos sobretudo compartilhar esse conhecimento. Torná-lo cotidiano, presente tanto numa conversa do café da manhã como numa troca de mensagens com um amigo distante.

É o epicurismo em sua essência, o prazer que nasce do cultivo da sabedoria, da boa conversa e – por que não? – da boa mesa. É o que se vê em outra bonita cena de A Última Nota, quando o pianista Henry Cole, vivido por Patrick Stewart, reflete sobre a velhice ao lado de amigos, num dia solar, acompanhado de vinho branco e comida farta.

Para ele, “uma das poucas coisas boas de envelhecer é nos tornarmos pragmáticos. Não procuramos mais significados. Procuramos apenas as palavras, ou o sono, ou o motivo para estar olhando para uma gaveta aberta. E não nos preocupamos mais com o futuro, nós apenas desejamos que o presente não acabe. O coração e a mente finalmente se alinham.”

Henry Cole vive dois baques terríveis numa curta sequência já ao final da vida, e é paralisado por eles. Não é fácil prosseguir, mas a música – assim como a arte, a cultura, o conhecimento – o redime. Perdas provocam danos, alguns irreversíveis, mas a sabedoria pode nos trazer algum alento para lidar com elas e nos manter vivos.

São pequenos prazeres que justificam a permanência: uma página lida já ao fim da noite, com o sono chegando, que nos transporta a outro universo. A lembrança de um verso de canção que nos leva ao passado. Um filme a que assistimos já na alta madrugada, acompanhados de uma taça de vinho e uma profusão de pensamentos que se movem como uma avalanche.