Convidado da Flica 2018, Silviano Santiago se define como um inquieto

Ele participará da mesa A Feroz Inquietude da Escrita, com o escritor baiano Marcus Vinícius Rodrigues

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  • Tharsila Prates

Publicado em 26 de setembro de 2018 às 06:12

- Atualizado há um ano

null Crédito: Cláudio Nadalin/Divulgação

Há quase 20 anos sem vir à Bahia, Silviano Santiago, 82 anos, se prepara para conhecer a histórica Cachoeira, no Recôncavo. O escritor, crítico e professor mineiro aceitou o convite para a Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), que acontece de 11 a 14 de outubro, e onde participará da mesa A Feroz Inquietude da Escrita, com o escritor baiano Marcus Vinícius Rodrigues.

Dedicando-se às memórias da infância no período de 1936 a 1948 – seu próximo trabalho –, Silviano disse ao CORREIO, por telefone, que vai pouco a feiras literárias, mas que topou vir à Bahia porque será um prazer rever amigos e conhecer pessoas. “Eu tenho escrito bastante nos últimos anos, e a gente não pode ficar cortando o trabalho, porque senão fica muito fragmentado”, explica ele, sobre a ausência em eventos públicos ultimamente.

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Trabalhando de casa, ele pesquisa o contexto da crise do café, na São Paulo dos anos 30, que levou à falência a família da madrasta de Silviano, que perdeu a mãe com apenas 1 ano e meio. Ele vai abordar ainda o que gosta de chamar de “enxerto”, já que uma família de sete irmãos ganha mais quatro com o segundo casamento do pai, além de desmistificar o preconceito em torno da figura da madrasta. 

“A minha era uma pessoa com uma bela formação intelectual, de uma família rica do sul de Minas, mas que faliu. Essa experiência é extremamente rica pra mim enquanto criança e retira um pouco a minha casmurrice de órfão”. A obra não será de ficção, adianta Silviano. (Foto:Cláudio Nadalin/Divulgação) Em Cachoeira, no feriado de 12 de outubro, o escritor falará sobre um estado que lhe é próprio: ser inquieto. Segundo ele, a inquietude se explica pelo fato de viver uma grande contradição: “Por um lado, eu sou um criador, que tem um total domínio sobre aquilo que faz. Por outro, sou também professor e crítico e, nesse sentido, uma pessoa que está sempre se decepcionando, porque nunca diz a última palavra que um criador tem. Está sempre se aproximando de uma obra que nunca terá completamente”, acredita.

Nascido em Formiga (MG), Silviano é doutor em Letras pela Sorbonne, deu aulas como visitante em diversas universidades dos Estados Unidos e Canadá e se aposentou na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde recebeu o título de Professor Emérito. Vive desde 1974 no Rio de Janeiro. (Foto:Cláudio Nadalin/Divulgação) Além de ter trabalhado em várias partes do mundo, ele define a inquietude também em seu caráter psicológico: “Tem algo a ver com uma rebeldia diante do estado das coisas, seja ele político, ideológico, estético, histórico, seja hoje com as novas questões, como as de gênero e outras. É uma inquietação muito subjetiva e pessoal e que move também a escrita, tanto a da criação quanto a escrita crítica”, afirma Silviano.

Pelo conjunto da produção literária, ele recebeu o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras (ABL), que, recentemente, abriu as portas para um novo imortal, o cineasta Cacá Diegues. A torcida pela escritora Conceição Evaristo, também mineira e que é a homenageada da Flica 2018, teve até campanha nas redes sociais, mas não influenciou os 39 acadêmicos com direito a voto.

“Para você entrar na ABL, precisa ter 39 votos. É uma regra. Só vota acadêmico, então esse voto popular, importantíssimo a meu ver, não afeta o estatuto desse grupo. Agora, seria bom que Conceição fosse aceita, mas só que minha voz não vale nada, porque minha voz não é um voto”. Sobre a própria entrada para o “clube”, como ele mesmo define a ABL, Silviano diz que só entrará se houver interesse da instituição.

Produtividade

Apesar da ausência em eventos públicos, o escritor é um nome bastante conhecido por sua produção literária. Em 2016, lançou Machado (Companhia das Letras) – uma mistura de romance, ensaio, biografia e memórias – que lhe rendeu, no ano seguinte, mais um Jabuti, prêmio literário mais tradicional do país. Silviano já havia sido agraciado com os romances Em Liberdade (1981) e Uma História de Família (1992) e pelo livro de contos Keith Jarrett no Blue Note 1996).

Em Machado, o escritor quis preencher uma lacuna na biografia de Machado de Assis: seus últimos anos de vida, “em geral negligenciados pela crítica e até mesmo pelos leitores”. O romance aborda as crises epilépticas enfrentadas pelo escritor carioca, já viúvo e solitário, no começo do século XX.

Silviano mergulha nesse universo para compreender a relação entre as convulsões de Machado e sua genial criação. “Chego à conclusão de que esse estilo de Machado de Assis, que todos acreditam ser uma imitação de escritores ingleses, é muito original dele, porque a própria vida do escritor funciona como uma folha de sismógrafo [por conta das convulsões que o fazem ficar ‘fora do ar’]. Esses saltos bruscos, essas paradas violentíssimas, essas digressões que não têm fim, abandonar um personagem e, de repente, retomá-lo 50 capítulos adiante, esses movimentos de uma folha de sismógrafo e que é a grande originalidade de Machado de Assis”, analisa. 

Já Em Liberdade traz outro grande escritor brasileiro – o alagoano Graciliano Ramos – e também um aspecto pouco analisado: os dias pós-prisão, onde ficou por dez meses e dez dias. “Me interessava muito em Graciliano surpreender a esquizofrenia do intelectual brasileiro, que, ao mesmo tempo, tem que custear a sua vida trabalhando para um governo com o qual, muitas vezes, não concorda, e querendo exercer o seu direito de cidadão pleno e livre e de cidadão artista – por definição, um indivíduo rebelde e inquieto”, explica Silviano.

O professor diz ainda que os momentos de Graciliano após a prisão não são abordados pelas biografias, “um gênero, que, muitas vezes, se volta para a biografia política do artista, negligenciando a importância da obra”. Por causa disso, acredita, a biografia seria um gênero incompleto.

Risco

É aí que entra o criador, apostando na novidade, em algo que não é tratado. “A novidade pra mim é o risco. Não há nenhuma garantia de que o que você vai dizer é mais forte do que aquilo que vinha sendo dito. Mas também correndo o risco, você vai, como diz Borges [o argentino Jorge Luis Borges], bifurcar o caminho, vai abrir uma nova estrada, por onde você caminha e espera que outros possam também caminhar”. 

Do lado acadêmico, também há originalidade. Em 2018, uma das principais obras de Silviano, Uma Literatura nos Trópicos – Ensaios sobre Dependência Cultural, faz 40 anos. No vídeo em comemoração à data, produzido pela PUC-Rio, a presidente da Academia de Letras da Bahia, Evelina Hoisel, lembra que estudou os textos do autor na pós-graduação, em 1975, ainda em apostilas. A professora do Instituto de Letras da Ufba lembra também do Entrelugar, escrito nos Estados Unidos (The Space In-between), um dos celebrados conceitos de Silviano, sobre a falta de lugar preciso, ainda não palmilhado. 

O companheiro de mesa na Flica, o escritor e professor Marcus Vinícius Rodrigues brinca ao dizer que conseguiu “um lugarzinho na frente para ver Silviano Santiago e, como pagamento, vou falar sobre o que eu escrevo”. Autor do recém-lançado livro de contos homoeróticos Café Molotov, Marcus diz que sua expressão pessoal é a palavra escrita e ela é, sim, feroz, como sugere o tema da mesa. “É feroz porque é irrefreável e tem a ver com a necessidade que temos de escrever”. A conversa promete.

Três dicas de livros de Silviano Santiago:

Machado - Trabalho mais recente do escritor, é uma mistura de romance, ensaio, biografia e memórias. Foi lançado em 2016 e rendeu ao autor o Prêmio Jabuti no ano seguinte.

Stella Manhattan -  Publicado em 1985, é considerado o primeiro romance gay da literatura brasileira. O livro foi  relançado em 2017.

Mil Rosas Roubadas -  Num jogo entre ficção e memória, o livro de 2014 fala do afeto entre dois homens e rendeu a Silviano o Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2015 de melhor obra.