Cozinheira frígida

Você já viveu épocas de profunda apatia à mesa, onde nada te apetece, enjoada de tudo?

  • D
  • Da Redação

Publicado em 13 de março de 2022 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Eu abri essa coluna há 10 meses com um artigo chamado Fome de Tudo, onde falava sobre excessos e o muito que se come para aplacar todas as fomes que trazemos para o corpo.

Hoje eu falo sobre fome de nada, (des)apetite generalizado, o (des)gosto.

Você já viveu épocas de profunda apatia à mesa, onde nada te apetece, enjoada de tudo? Como se todas as opções do mundo ainda fossem pouco, não havendo ali absolutamente nada capaz de acender uma luzinha de desejo guloso?

Imagino que os motivos de apatia da fome devam ser os mais diversos de pessoa para pessoa, provenientes de campos biológicos, psicológicos, psicossomáticos, metafísicos e o escambau, vai saber, nem vou futucar isso. 

Fato é que faz tempo que a minha mãe, lá com seus motivos, vem se queixando desse enjoo de tu-do à mesa. Enjoou de galinha, de feijão com arroz, do cortadinho de abóbora, comida baiana, bife de panela, tudo. Ítens de café da manhã então... enjoou de cuscuz, de beiju, pão, queijo, bolo, mingau. Só não enjoou de fruta, salada, raiz e sopa - que assim como eu, tomaria todos os dias. 

Eu não tinha percebido, mas também tô assim. Por mais encantador que seja o prato, por mais diverso que possa ser o cardápio mensal, nada tem me emocionado. Ando muito racional à mesa.  Moqueca de ovos (Foto: Kátia Najara) Diante de um prato sofisticado de restaurante - que começa com a avaliação visual - enxergo primeiro as peripécias e estratégias cuidadosamente elaboradas e minimamente calculadas para seduzir, e me sinto diante de uma abordagem técnica, matemática demais; cabeça vai para o perfil do instagram e se mistura com uma montagem pinterestiana em timelapse, com estratégias de marketing, corrida de curtidas, e ainda que a comida esteja uma de-lí-cia, fico tonta e sinto um enorme vazio no peito-coração. Se estiver ruim ou opaca, o vazio vira tristeza. Tá errado o restaurante? Não, claro que não! Eu que tô caçando confusão.

Numa escala crescente de desencantamento, diante de um prato que se pretende ser o que não é - seja por falta de técnica, acervo, ingenuidade, ausência de auto-conhecimento e de identidade - tenho dó e compadeço-me. E tudo me diminui a fome, porque “era pra ser de revista” (e não fui eu quem quis assim), mas o ramo de coentro tá enorme e encharcado, que maçada! E vem aquela tristeza que vira desapetite, mesmo se tiver bom. Tá errado o restaurante? Tá, que ninguém tem que se meter a besta e fazer o que não sabe, o que não é em essência. Eu acho.

Daí eu tento buscar algum aconchego numa padaria de bairro depois de deixar Bê na escola. Já que tem nome francês e eu estou aqui, vou pedir um croque-monsieur, vai. Mas pra quê, Katita? Não sabe que o seu corpo não processa bem o excesso de gordura? Sei, mas errei, fazer o quê? E deprimo olhando o que sobrou no prato do sanduíche de um milhão de dólares depois que afastei com o garfo toda aquela grossa camada de gruyère suspeito derretido e bechamel, que deu piriri só de olhar.

Daí eu penso: só cozinhando pra ver se melhora esse entojo, essa ginge. Mas qual nada, quem disse? Depois de tantos anos de cozinha no lombo só quero saber, por enquanto, de curtir a minha recente alcançada auto-aposentadoria. Prefiro tacar uma pipoca no microoondas, toda errada. E depois que subtraio da minha lista de possibilidades de uma fome feliz (falo daquela gula erótica, sabe como?) os rigores técnicos, o desespero algorítimo, os empavonamentos, as cópias infiéis, o desassossego e alto nível de socialização dos ambientes instagramáveis, o mais do mesmo,  a minha própria comida em suspenso, e os rangos tóxicos que entopem as minhas veias e colocam em risco a minha longevidade, sobra só cuscuz, moqueca de ovo com jabaculê, a autêntica comida indiana da mãe de Vishnu, e as minhas próprias sopas quando entro numas. 

Tô assim, chata que só. Mas essa frigidez há de passar e logo logo, com fé na luz, tô devorando de taboca de mei’ de rua a Adriá. Ou não.

MOQUECA DE OVO COM JABACULÊ

Unte uma moquequeira de barro de Dona Cadu (dê seus pulos) com azeite doce (oliva, gente) concentrando um pouco no fundo.

Vá dispondo  os temperos de moqueca em rodelas não muito finas para não quebrar, que fica bo- nito é assim. Tomates, pimentão verde, cebola branca, pimenta de cheiro, raspinhas de gen- gibre e limão, talo de coentro picado, sal, tudo alternado. Ah! E camarão defumado sem tinta, dessalgado (eu tiro cabeça e ponta da cauda).

Leve ao fogo  para aquecer a panela, some leite de coco natural e deixe cozinhar até levantar fervura;

Agora tome  um belo punhado de jabaculê (jabá, gente! charque, carne seca) que você dessalgou, cozinhou na pressão, desfiou e tostou na manteiga de garrafa com cebola roxa. (pule es- se ingrediente e o camarão defumado, e terá a mais saborosa das moquecas vegetarianas, a de ovo).

Já no final  da cocção, com os temperos ao dente como a gente ama, deite aquele dendê da Costa na medida do seu coração, antes da apoteose da adição dos ovos - dois por pessoa, já com o fogo apagado, que é para cozinhar apenas no calor da panela para não endurecer. 

Punhado de coentro (agora folhas) e abafa a panela, para dali a pouco refestelar-se. Gosto com pirão, OU arroz branco d’alho, OU farofa de minduins, nunca mais do que uma guarnição apenas. Ou até com o pão de copioba da amiga Andréa pra chuchar no molho, como diz a amiga Leila.

Kátia Najara é cozinheira e empreendedora criativa do @piteu_cozinhafetiva