Crônica de um massacre anunciado

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  • Paulo Sales

Publicado em 3 de agosto de 2020 às 12:53

- Atualizado há um ano

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É bem provável que nesta semana o Brasil alcance a marca dos 100 mil mortos pela covid-19. Gente velha, como Aldir Blanc. Gente nova, como Rodrigo Rodrigues. Gente anônima, que sequer teve o diagnóstico da doença confirmado. Gente que morreu sem poder respirar ou se despedir da família. É um massacre, uma carnificina e, mais do que tudo isso, uma evidência incontestável da indigência intelectual, material e espiritual em que estamos embrenhados. Estultice e canalhice em larga escala se materializam na glorificação de um medicamento inútil, na boiada passando enquanto as atenções se voltam para as mortes anunciadas.

Nos anos 80, Caetano cantou, em Nu com a Minha Música: “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor”. Na semana passada, em entrevista ao jornal inglês The Guardian, ele reafirmou certa esperança no nosso destino, mesmo se mostrando perplexo diante da terra devastada: “O Brasil está aqui, bem aqui. Nossas florestas, nossas canções, nossas peças e nossos filmes estão sendo ameaçados por esse governo – e estão em processo de serem destruídos. Mas, como um dos membros do grupo que produz música popular, eu posso assegurar que nós estamos aqui – o Brasil está aqui.”

A pergunta que me faço e gostaria de fazer a Caetano é: mas que Brasil é esse que está aqui? Afinal, não encontro mais o Brasil onde cresci, por mais desigual e violento que sempre tenha sido. Nele, certa irreverência e inocência mesclavam-se com um senso poético muito particular, que desaguou nos sambas e na classe de Cartola e Paulinho, no hedonismo gregário de Vinicius, no virtuosismo de Tom, no lirismo de Chico, na força ancestral dos cantos praieiros de Caymmi, na alegria ingênua de Gonzaga, na inspiração intuitiva de Gil, na sensibilidade do próprio Caetano.

Nós (ou uma parte de nós) já fomos cultos, refinados, capazes de – através da música, da poesia, do romance, da crônica, do cinema e do teatro – refletir, compreender e por fim reproduzir nossas singularidades, nossas grandezas e nossa miséria. Hoje tudo isso é insignificante, invisível em meio à manada, por mais que persista alguma delicadeza perdida de outros tempos.

Há algo de podre neste país decomposto, no qual parte significativa da população louva um sociopata. Um país enfermo, convulsivo, agônico, no qual discussões e acusações sem qualquer fundamento proliferam na terra de ninguém das redes sociais. Um país no qual a mentira em escala industrial – agressiva, virulenta, inescrupulosa – virou estratégia para manutenção do poder. Como sobreviver a tudo isso? Como aceitar a destruição sistemática da cultura, do meio ambiente, da saúde, dos direitos humanos, da civilidade, enfim, de todas as características que nos formaram como nação?

Em artigo publicado semana passada na Folha de S.Paulo, o psicanalista italiano Contardo Calligaris se disse cansado disso tudo: “Desde o ano retrasado, a atualidade é ocupada por uma vulgaridade inculta, grossa, violenta e idiota, que é imperativo escutar e comentar – no mínimo, para a gente se defender de seu ódio. É o que mais detesto e desprezo no Brasil de hoje: a necessidade de passar estes anos me dedicando a contemplar e tentar explicar sua boçalidade”.

Serão 100 mil mortos esta semana. E não vejo nenhuma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor.