Crônica do dia: As ilusões da Copa em casa

Time anfitrião sempre vai mais longe que o habitual

  • Foto do(a) author(a) Gabriel Galo
  • Gabriel Galo

Publicado em 5 de julho de 2018 às 15:44

- Atualizado há um ano

. Crédito: Yuri Kadobnov/AFP

Quem afirma é a estatística, essa menina travessa que sob tortura enverga e entorta e confessa absurdos. O time que joga uma Copa em casa avança a mais longe do que se acostumava. Ah, não é? É! Senão, vejamos.

O México, especialista em oitavas de final, atingiu as quartas duas vezes, justamente em 70 e em 86, quando foi sede. Coincidência? Nem tanto. A primeira final brasileira foi em casa, em 1950. Que tal a Suécia e sua única final em 1958? Ou o Chile, semifinalista em 1962, mesmo patamar alcançado pela Coreia do Sul em 2002?

França ganhou seu único título em casa. Inglaterra também. Uruguai e Itália venceram os dois primeiros mundiais em seus quintais. Argentina levou em Buenos Aires seu primeiro título, Alemanha o seu segundo em Berlim.

De tão poderoso que é o sentimento de jogar a Copa em casa, em apenas uma ocasião o time anfitrião não passou da primeira fase. Coube à África do Sul esta indigesta desonraria em 2010, exceção que comprova a regra.

O clima de Copa contagia. Parece empurrar o time da casa a andares inimagináveis. E nesta edição, quem dá as caras, como dita a regra não escrita, é a Rússia. Alcança umas quartas de final impensável. Eliminar a Espanha? Categoricamente, no pré-Mundial, qualquer pessoa em sã consciência diria “Espanha”, sem pestanejar. O escrete espanhol andava muito além da capacidade técnica do selecionado russo.

Mas aí tem o elemento sobrenatural, que se reveste de metafísica, profanado no grito da torcida, nas bandeiras nas sacadas, nos batuques e vuvuzelas, que entra pelos olhos, boca, narinas e orelhas, a sua presença. Entra em campo no espírito do vai-que-dá. Ah, o poder da motivação! E o atleta vai, quando vê, deu!, e quer mais, “sim, podemos!” Um sistema que se retroalimenta, quanto mais avança, mais se motiva, mais certeza produz, mais energia gera e a lusitana roda.

A atmosfera de Copa em casa abraça e envolve como um cobertor quentinho num dia de frio. Por instinto, mesmo que não queiramos, estamos envoltos em seu manto acolhedor, confortavelmente aconchegados, não vivemos sem, quero Copa todo dia! Torcer pelo seu país em seu terreno provoca uma espécie de ilusão coletiva, uma escalada irracional rumo ao título.

E se alguns julgam isso ser impossível, meio louco, “comigo jamais aconteceria”, basta que lembremos de 2014, quando acreditamos que o Brasil seria campeão jogando uma semifinal com Hulk, Oscar, Bernard e Fred. Ora, mas quá! Será o impossível?

Para nós, brasileiros, demorou um tempo para vermos o tamanho da mentira que nos contaram. Ao mesmo tempo, mostramos, como a Rússia mostra, que é possível mais quando se canta o hino à capela. Aí, quando se percebe onde está, cai a ficha e nos perguntamos: “nossa, como chegamos até aqui?” Fé cega, paixão ardente, torcida insana. A Copa é um emaranhado de ilusões, literatura em execução, pronta para nos atrair com seu canto hipnotizante.

Gabriel Galo é escritor. Texto publicado originalmente no site Papo de Galo.