Crônica: Ei, Argentina, vai querer CPF na nota?

Freguês ficou indignado com o tratamento; comentários sobre Brasil 2x0 Hermanos

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  • Gabriel Galo

Publicado em 4 de julho de 2019 às 10:21

- Atualizado há um ano

. Crédito: Douglas Magno / AFP

Chega o ser com cabelo meio comprido, um tanto desgrenhado, bufando. Dirige-se automaticamente para a seção de atendimento ao cliente.

“Quiero hacer una reclamación!” brada alguns tons acima do normal, dedo em riste. Estava bravo o hermano.

A gerente de atendimento é avisada e se encaminha ao encontro do insatisfeito cliente. Veste-se de toda paciência possível. Vai ser um tratamento complicado este que se avizinha.

Ao ver a gerente se aproximar, o consumidor retira do bolso a nota fiscal. Bate no balcão mostrando o papel. E nem bem ela se apresenta, ele esbraveja. E a cada manifestação dele, ela respondia com parcimônia, cuidando das palavras para não amplificar a insatisfação.

“Sim, senhor, eu entendo. Os gramados realmente não estão no padrão europeu. Mas isto afeta tanto a gente quanto a vocês. Aliás, diria que até mais a gente, já que apenas 3 andam por aqui em vez de por lá”.

Ele não aceita o argumento. E prossegue, ao que ela replica, com um quase sorriso.

“Sim, senhor, eu entendo. O VAR não está funcionando da maneira ideal e o mediador não era, talvez, o mais preparado para o momento. Mas o mundo inteiro ainda está entendendo a dinâmica dele. No começo de qualquer nova implantação, é normal haver oportunidades de melhoria. Inclusive, nós tivemos 3 cancelamentos num mesmo dia, recentemente. Você se lembra?”

Sim, ele se lembra. Mas não engole. E segue, ao que ela responde, com semblante tranquilo.

“Sim, senhor, eu entendo. O favorecimento à nossa empresa, como ponto principal e sede, parece ser fato. Mas não é. O sindicato que controla o nosso negócio, aliás, é constante dificultador aos nossos. E sobre favorecimento, inclusive, 5 anos atrás, nossa maior e mais emblemática sede foi mais utilizada por vocês que por nós. Nossos concorrentes diretos avançaram às fases mais agudas do liberalismo continental, apesar de dizerem por aí serem mais fracos. E fica estranho falar de favorecimento quando em 1978 – eu sei, tem muito tempo, 41 anos! – nós fomos prejudicados de maneira um tanto escancarada, o senhor não acha?”

Ele não achou. Seguia balançando a cabeça em negação. E persistiu, ao que ela arguiu com convicção.

“Sim, senhor, eu entendo. Para amainar os ânimos, digamos que vocês foram superiores e mereciam muito mais. Mas os números e a história não dizem isso. De onde sai esta sua percepção?

Ele, agora com muito menos veemência, procurou permanecer na posição de injustiçado.

“Sim, senhor, eu entendo. Aqui não falamos espanhol. Mas, infelizmente, é algo que está totalmente fora de nosso controle. Alterar o idioma de uma nação só para agradá-lo, por incrível que pareça, pode levar muitas e muitas gerações, e não depende em nada da gente. E, convenhamos, não são línguas assim tão diferentes. Mas, pensando no melhor pra você, podemos disponibilizar tradutores para ajudar. Que tal?”

Ele já não tinha mais o que dizer. Disse apenas não e não. Uma lágrima escorria pela face. Ao que ela ensaiou uma cartada final, estendendo a caixinha de lenço de papel.

“Ah, você já está de saída? Poxa, que pena que a relação tenha que se despedir assim de maneira tão abrupta. Mas estou certa de que teremos muitas outras oportunidades de interagir! Ainda assim, analisando o seu caso, e verificando aqui no seu recibo, a única que posso fazer é garantir um retorno, por menor que seja. Sim, eu sei que é pouco. O senhor tem toda razão. Aliás, o senhor tem sempre razão. Mas, dentro do limite da minha alçada, isto é o que posso oferecer e perguntar: CPF na nota?”

*Gabriel Galo é escritor. Texto publicado originalmente no site Papo de Galo e reproduzido com autorização do autor.