Cronista da velha São Salvador, Riachão imprimiu marca pessoal no samba

Cantor e compositor morreu na madrugada de segunda-feira (30), aos 98 anos

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  • Da Redação

Publicado em 31 de março de 2020 às 05:50

- Atualizado há um ano

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Se há uma convicção entre todos aqueles que conheceram Riachão é de que nele a alegria genuína era cultivada através das coisas simples. O bairro onde nasceu, as frutas  no quintal da casa em que sempre morou, a família, os amigos, o samba; tudo se equilibrava de forma harmoniosa, de modo que Riachão sempre parecia estar de bem com a vida.

Nem mesmo a morte, que chegou sorrateira na madrugada de ontem, foi capaz de desfazer tal imagem. Pelo contrário. Foi só o tempo de esperar o fim do aniversário de Salvador, que ele tanto traduziu em versos, para o sambista anunciar a sua despedida.

“Ele deve ter morrido bem feliz, porque estava no seu cotidiano normal e foi embora como queria, no Garcia, na casa onde viveu seus 98 anos”, acredita o produtor musical Paulinho Timor, 37 anos, que desde 2013 trabalhava com o cantor.

A única coisa que talvez tenha fugido ao roteiro foi o modo apressado com que foi sepultado, no Cemitério Campo Santo, em uma cerimônia restrita a poucos familiares,  por conta da pandemia do coronavírus.

Desafio “Ele que sempre soube driblar a tristeza e contagiar a todos com sua alegria autêntica. Uma alegria produzida com muita consciência. Era um desejo dele ver as pessoas alegres. Só assim ele ficava feliz. Ensinava, mesmo sem a felicidade desejada, a sermos alegres”, avalia o cantor e compositor J. Velloso, que produziu ao lado de Paquito o disco Humanenochum (2000), um dos cinco álbuns que Riachão lançou ao longo da vida, incluindo Samba da Bahia, em que canta ao lado dos amigos Panela e Batatinha. Os 'bambas' Edil Pacheco, Riachão, Walmir Lima, Batatinha e Ederaldo Gentil reunidos Nascido Clementino Rodrigues (1921-2020), se tornou Riachão por seu jeito brigão e valente. Desde a infância, gostava de escutar e cantarolar os sambas que nasciam no Rio de Janeiro. Até que, aos 16, quando caminhava em direção à alfaiataria onde trabalhava, encontrou no chão um recorte de revista que dizia: “Se o Rio de Janeiro não escreve, a Bahia não canta”. O jovem, que nunca levou desaforo para casa, se sentiu desafiado e compôs no dia seguinte seu primeiro samba: “Eu sei que sou malandro eu sei, conheço o meu proceder”, dizia a letra que selou seu caminho.

A elegância com que sempre se portou data também dessa época, justamente pelo trabalho em alfaiatarias muito requisitadas. Terno, anéis, boné de malandro e a famosa toalha em volta do pescoço fizeram dele uma figura inconfundível e reconhecida por todos em qualquer canto da cidade  - e do país. Riachão sendo homenageado no Carnaval do Pelourinho, em 2018 (Foto: Alexandra Martins Costa) Além da alegria, outra marca de Riachão foi inegavelmente sua paixão por Salvador. Ele, a cidade e a obra sempre foram uma coisa só.

Para a cantora Vânia Abreu, que escreveu o livro infantojuvenil Eu e Meu Lugar , sobre a relação de Riachão com o Garcia, não dá para falar de um, sem falar do outro. “A gente não separa as pessoas dos lugares onde elas aprenderam a ser gente. Se Riachão não estivesse integrado à vida da cidade, talvez ele não tivesse encontrado a música dentro dele”, pondera a cantora, que há dez anos procurou o artista na tentativa de gravar e catalogar o máximo de composições que ele lembrasse. O projeto acabou culminando no álbum Mundão de Ouro (2013), um dos projetos artísticos que mais alegrias trouxe ao artista na última década. Arte da capa do livro Eu e Meu Lugar (Ilustração: Mike Sam Chagas) Não era raro ouvir Riachão dizer que tinha mais de 500 sambas. A maioria, no entanto, só lembrava "de cabeça". Nunca pegou um lápis ou caneta para compor nada, e parte do que havia gravado nos anos de ouro da rádio acabou se perdendo em um incêndio. Apesar de vasta, a memória não dava conta de tudo; lembrava de uma história ou de uma música, esquecia de outra, voltava a lembrar depois em outra circunstância.

Um caso que ele nunca deixava de contar era sobre a origem da música Cada Macaco no seu Galho, uma das mais conhecidas do seu repertório, gravada por Caetano Veloso e Gilberto Gil em 1972, quando ambos retornaram do exílio em Londres. Embora a canção, à época, tivesse ganhado conotação política, Riachão conta que origem do samba foi mais simples e fortuita. A ideia partiu de uma desavença com seu sócio em um pequeno negócio de onde saía o dinheiro para pagar as contas. Quando a empreitada começou a desandar, decidiu mandar o parceiro, "moço da cabeça grande" que veio sabe lá de onde, "mamar em outro lugar". Cateano Veloso, ao lado de Riachão, de quem regravou duas músicas, incluindo Cada Macaco no Seu Galho, com Gilberto Gil Outra canção conhecida do músico é Vá Morar Com o Diabo, a qual também foi  gravada em dueto com Caetano Veloso em 2000. No ano seguinte, foi popularizada pela cantora Cássia Eller, que cantou o samba para o álbum e DVD da série Acústico MTV. Dessa música, ele dizia não gostar. Afinal, na obra e na vida ele não queria contendas, brigas, e só se satisfazia cantando a alegria e o amor.

Para Paulinho Lima, produtor do primeiro álbum do sambista, Riachão continua sendo um dos maiores artistas populares da Bahia e também um mistério. "Uma vez arrumei para que se apresentasse no programa do Chacrinha, na TV Globo, e como o orçamento de produção era mínimo, consegui hospedá-lo com D. Lucia Rocha (mãe de Glauber), em seu casarão em Botafogo. Testemunhei certa noite, chegando de surpresa, D. Lucia, aos prantos, ouvindo Riachão interpretar a capela uma de suas canções “sérias”. Esse lado do sempre alegre e divertido artista continua oculto. Vai fazer falta", lamenta.

Cronista da Bahia Apesar da idade avançada, ainda realizava shows e algumas aparições. A última delas ocorreu no Carnaval deste ano, quando foi visto na sacada de sua casa assistindo a saída do bloco Mudança do Garcia, no circuito que leva o seu nome.“Sempre encontrava com ele no Pelourinho, centro da cidade, na região do Elevador Lacerda. Me batia com ele lá mais até que no Garcia. Lá, quando não estava na rua, ficava no seu quintal. Ele tinha uma horta lá e ficava cuidando. Até os 80 para 85 anos ainda víamos ele passeando, mas depois disso ele deu uma segurada, saia menos”, diz o  ator Jorge Washington, do Bando de Teatro Olodum. 

No Centro, um dos endereços certos era a Cantina da Lua, bar do amigo Clarindo Silva, instalado no Terreiro de Jesus e que por anos funcionou como um reduto boêmio de sambistas como Batatinha, Panela, Ederaldo Gentil, Walmir Lima, Edil Pacheco e Claudete Macedo. O bar chegou a virar música, gravada em parceria com Clarindo. "Um dos grandes responsáveis não só pela revitalização do Pelourinho, mas sobretudo pela preservação da nossa memória cultural, porque você canta a Bahia, e encanta a todos aqueles que chegam na nossa cidade, no nosso estado e no nosso país. Axé, Riachão", diz o empresário na abertura da faixa.

Ontem, Clarindo foi um dos poucos que compareceram à despedida no Cemitério Campo Santo. Fica no ar o desejo de um adeus à moda Riachão, assim que tudo isto passar. Ele merece e ia gostar.