Cultura LGBTQIA+ se manifesta como arte e estilo de vida em Salvador

Plano Municipal de Cultura que prevê ações para essa área será votado na próxima semana

Publicado em 9 de dezembro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Evandro Veiga/Arquivo CORREIO

Dos blocos de Carnaval aos bares e boates gays. Da moda nas ruas aos espaços culturais. A peça teatral que discute homofobia, a pesquisa acadêmica que investiga o pink money (dinheiro rosa) e o curta-metragem que provoca debates sobre esses e outros temas. A cultura LGTBQIA+ está presente em cada canto de Salvador e ganhou um espaço no Plano Municipal de Cultura que será votado pela Câmara Municipal, na próxima semana.

A cultura gay, como costuma ser simplificada, é uma realidade mundo a fora a ponto de as plataformas de streaming terem sessões dedicadas exclusivamente a essa categoria. O presidente da Fundação Gregório de Mattos (FGM), o produtor, ator e diretor Fernando Guerreiro, responsável por coordenar a elaboração do Plano, frisou que a cultura pouco tem a ver com a orientação sexual e muito com a estética das produções.“É um estilo de vida. Cultura é comportamento. A cultura LGBTQIA+ trouxe uma forma específica de se vestir, com cores fortes e personagens exagerados, como vemos nos filmes de Almodóvar. É uma marca dessa cultura. Não precisa, necessariamente, tratar de orientação sexual. Você pode, por exemplo, ter um beijo gay em um filme que não tem nada a ver com a cultura LGBTQIA+. É uma estética”, afirmou.A argumentação foi apresentada depois que parlamentares questionaram a necessidade do termo no documento. O Plano foi construído em uma parceria entre a Fundação e representantes da sociedade civil, durante uma discussão que durou três anos, teve cinco audiências pública e 600 sugestões. Ele fala em apoiar e fomentar a realização de eventos, projetos e pesquisas voltados para essas e outras minorias, como negros e indígenas.

“Não é possível negar a existência da cultura LGBTQIA+. O que seria o carnaval sem essa cultura? Pelo menos 50% da receita ia cair por terra. Pense no número de blocos que temos hoje trabalhados nesse grupo e nessa estética, de bares e de festas. É cultural. E é um movimento muito forte, assim como é a cultura evangélica”, disse.

Integrantes da comunidade e simpatizante afirmaram que essa temática transbordou do gueto cultural para outros espaços, como avaliou o estudante Rafael Cardoso, 28 anos. “Quando comecei a frequentar a cena gay os espaços eram bastante segregados. Exista lugares específicos para a gente frequentar. Hoje, temos uma quantidade maior de festas e espaços. O próprio carnaval se reinventou nesse sentido. E cada vez mais o público está aprendendo a respeitar e conviver em harmonia com a comunidade”, disse.

Esse modo de vida está tão presente na cidade que basta uma pesquisa aos sites e plataformas de turismo gay friendly - modelo de viagem que lista locais para visitar e hospedagens para o público LGBT - para percebe que Salvador aparece entre os dez destinos mais recomendados. Depois da reabertura das casas de shows, as drag queen, travestis e transformistas voltaram a se apresentar e, aos fins de semana, filas são formadas nas portas das boates voltadas para esse público. 

Votação O projeto, elaborado pelo Executivo, chegou à Câmara em junho, recebeu 35 emendas e teve 12 acatadas. A expectativa é de que seja votado na segunda-feira (13). A matéria defende como estratégia promover a diversidade cultural, com apoio e financiamento, como vetor de desenvolvimento econômico para a cidade. O plano vai vigorar pelos próximos dez anos e passará por reavaliações a cada dois anos.

Depois dos embates, ficou decidido que o termo continuaria no texto, mas teria que ser precedido pela expressão “comunidades culturais em situação de vulnerabilidade social”. O presidente da Comissão de Cultura e relator do projeto, Silvio Humberto (PSB), se manifestou contra a alteração, mas disse que foi a saída encontrada para conseguir a aprovação.“O plano teve uma participação importante da sociedade civil e apresenta um diagnóstico cultural da cidade do Salvador. Mesmo sendo da oposição, precisamos levar em consideração que todos os trâmites para elaboração desse plano foram trabalhados de forma coletiva. Entendo que é uma janela de oportunidades para a cultura e não pode ser seletivo em matéria de reparação, protegendo uns e excluindo outros”, disse.O Plano prevê ações e metas também para o enfrentamento ao racismo, a intolerância religiosa e ao preconceito contra indígenas e estrangeiros.

Silenciamento Para o doutor em Comunicação e Cultura e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Leandro Colling, a cultura LGBTQIA+ é uma realidade presente no campo artístico, antropológico e econômico da cidade.

“É claro que existe uma cultura LGBTQIA+. Existe um plano de produções artísticas que foi desenvolvido na história da comunidade, como por exemplo as ações envolvendo drag queen, travestismos e transformismos. São práticas e manifestações artísticas que foram criadas dentro da comunidade”, afirmou.

Ele citou Madonna e a série Pose (Netflix) como dois exemplos atuais de influências da comunidade e apresentou outra perspectiva.“Se a gente pensar cultura de um ponto de vista mais antropológico, como o modo de ser e estar no mundo, vamos encontrar exemplos que se diferem da forma heterossexual. Tanto na perspectiva artística, como a antropológica há uma cultura LGBTQIA+, mas a discussão não é essa”, disse.Colling acredita que a negação dessa cultura é uma cortina de fumaça que esconde preconceitos sobre a comunidade. Ele defendeu o Plano Municipal de Cultura, disse que o texto não discute a questão conceitual, mas políticas públicas, e que a sociedade não pode negar a realidade.

“Vamos inverter a pergunta: alguém duvida que existe uma cultura negra em Salvador? Quando não queremos marcar é porque não queremos reconhecer as contribuições históricas daquele grupo para a construção da cultura. É uma estratégia para apagar a existência dessas pessoas e um subterfúgio para impedir a elaboração de políticas públicas no campo da cultura para o respeito a diversidade sexual e de gênero”, disse.