De profissional da saúde a babalorixá: eles furaram a quarentena para ver o caboclo

Por fé e civismo, cerca de 100 pessoas foram assistir cerimônia restrita na Lapinha

  • Foto do(a) author(a) Daniel Aloísio
  • Daniel Aloísio

Publicado em 3 de julho de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

O Dois de Julho é popular há mais de 190 anos, assim como a própria luta, em 1823, teve grande participação do povo. Mas, em 2020, em vez do cortejo colorido e alegre que toma conta das ruas de Salvador, a pandemia de covid-19 fez todo mundo rezar ao pé do caboclo mais em espírito do que em corpo presente. Mesmo assim, a cerimônia simbólica realizada, nesta quinta-feira, 02, diante do Pavilhão da Lapinha onde são guardados os carros do Caboclo e da Cabocla, teve a presença de quase 100 baianos que - por devoção e um pouco de teimosia -,   assistiram ao evento por detrás das grades que isolavam o monumento aos heróis da Independência. 

A maioria eram moradores da própria Lapinha, mas nem todos. Teve gente que saiu de longe para demonstrar sua fé e civismo, como tradicionalmente acontece nos anos normais. Esse é o caso de Jackson Simões, 48 anos, que se apresentou como Pai Yoyô, babalorixá do terreiro Dandamutalê, no Matatu de Brotas. Para ele, a cerimônia tinha que ter a presença de “lideranças populares”.  

“Não dava para ser como antes, pois aqui ficava bem lotado, mas penso que seria importante a presença de lideranças individuais de algumas religiões, por exemplo, para representar o povo”, disse. Dos presentes, Pai Yoyô era um dos mais ativos. Ele gritava “viva o Dois de Julho! Viva o caboclo!” e era acompanhado pelas outras pessoas que estavam no local.   Pai Yoyô só usava a máscara incorretamente quando puxou o "viva o Dois de Julho!" (Foto: Marina Silva/CORREIO) A reportagem do CORREIO contou cerca de 100 pessoas em uma das calçadas da Lapinha, o que gerou certa aglomeração, embora os presentes fizessem questão de manter distância uns dos outros e usassem máscaras. Iara Argolo, 66 anos, fez que estão de ir de verde e amarelo, tanto na camisa como no equipamento de proteção. “Eu sou tradicional, nascida e criada na Lapinha. Todo ano venho com essas cores”, disse.  

Iara também carregava um ramo na mão, para colocar no carro do caboclo. O problema é que com a grade, havia a possibilidade dela não conseguir realizar o que faz todo ano. “Vou ter que dar um jeitinho”, disse. E não é que ela conseguiu! Quando a cerimônia acabou e os agentes municipais começaram a desfazer a estrutura, Iara se aproximou do caboclo e fez sua homenagem. “Consegui, consegui”, comemorou, logo após o feito.   Iara disse ser descente de índo e, por isso, se vê no caboclo (Foto: Marina Silva/CORREIO) Moradora da Lapinha, a fisioterapeuta intensivista Danielle Freitas, 33 anos, mesmo trabalhado numa UTI voltada para covid-19, fez questão de participar da festa. "Minha vida tem sido de casa para o hospital, mas eu frequento esse evento desde criança. Era levada pelo meu avô. Não podia deixar de vir, já que acontece tão perto da minha casa", disse. Esse é, inclusive, o segundo ano em que Daniela leva o seu animal de estimação, o cachorrinho Guti. "Estou estimulando a civilidade nele", disse, aos risos. 

Não foi só Danielle que aproveitou o momento. A dupla de artistas Adilson Guedes, 52 anos, e Djalma Santos, 46 anos, que em suas fantasias carregavam o estandarte de Santa Dulce e uma cruz fitada, fizeram sua oração. "Não viemos chorar ao pé do caboclo e sim rezar ao pé do caboclo para o fim da pandemia", explicou Adilson.  Dupla de artistas faz parte do grupo Anima Salvador e trabalha com turista (Foto: Marina Silva/CORREIO) Os dois saíram do Nordeste de Amaralina e precisaram acordar às 5h20 para chegar cedo na cerimônia. Adilson especialmente usava uma roupa de marinheiro. “Mas é moderna, por causa do protetor facial”, explicou. Já Djalma usava apenas uma máscara. “De qualquer modo, estamos respeitando o distanciamento. Nós só viemos pedir, rezar mesmo. Esse é um ato de fé e peregrinação”, explicaram.  

Protesto discreto Todo ano, além dos atos de fé, a política é um elemento que sempre se faz presente no 2 de Julho. Dessa vez, não foi diferente. Teve protesto, mas com pautas adaptadas aos tempos de pandemia. Um grupo de quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, pediam a reabertura dos shoppings. Eles disseram representar a classe dos lojistas e não quiseram se identificar.  “Está na hora de abrir, mas de forma organizada, como já é no supermercado. A gente não quer que aumente o número de mortes, mas sim que resolvamos essa situação. Estou parado, tendo que tomar empréstimo e me endividando”, disse um deles.   Grupo defende abertura do comércio "de maneira organizada" (Foto: Marina Silva/CORREIO) O grupo teve apoio de alguns populares, mas também houve quem contestasse o movimento. Em conversa com o grupo, uma mulher tentou apresentar argumentos de como a aglomeração nos shoppings pode ser ruim nesse momento.   Para as amigas, cortejo de 2021 tem que ter uma homenagem aos profissionais da saúde (Foto: Marina Silva/CORREIO) Essa foi a primeira vez na história que o desfile não aconteceu. Membro do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e devoto do caboclo, o historiador Milton Moura explicou que, desde 1824, um ano após o fim da guerra de independência na Bahia, houve participação popular.  

“Mesmo quando o caboclo não participou, em 1923, pois o substituíram pela imagem do Senhor do Bonfim, o povo esteve presente. Essa devoção e reconhecimento do povo baiano no caboclo é o grande motivador para essa participação”, explicou.   Professora Nilsa fez questão de colocar a bandeira do Brasil na sua fachada (Foto: Marina Silva/CORREIO) O próprio professor Milton fez questão de ir até o local, às 12h, após a cerimônia já ter se encerrado. “Eu vivo intensamente essa devoção. Mesmo que eu vivesse em outra cidade, estaria com o coração aqui no Dois de Julho”, explicou. Durante todo o dia, as pessoas levaram oferendas ao caboclo no Pavilhão Dois de Julho.  

O governador Rui Costa e o prefeito ACM Neto, que participaram do ato cívico, minimizaram a teimosia dos que furaram a quarentena para participar da cerimônia. “Em relação ao que é normalmente, não podemos dizer que foi muita gente que veio”, disse Rui Costa. “A cerimônia foi feita de maneira organizada. Não penso que tenha acontecido um desacato da população”, disse Neto.  

* Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.