De quando era outono em qualquer época

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  • Kátia Borges

Publicado em 12 de julho de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Por algum tempo, morei na Ribeira, numa das vias de acesso ao Porto dos Tainheiros. Estudava tão perto que ia andando todos os dias até a escola. Lembro ainda hoje a rua que atravessava primeiro naquele percurso, repleta de árvores e de casas, mas sempre deserta bem cedo. Eu não sentia medo algum, apenas uma melancolia persistente que combinava com o silêncio e com as folhas secas que caíam no passeio – o engraçado da memória é esse engenho, tão próprio dela, faz parecer outono em qualquer época.

Naquela época, eu costumava imaginar como seriam as pessoas, por trás dos muros e dos jardins dos sobrados elegantes daquele trecho da Ribeira. Nossa família vinha de uma área bem menos classe média, a Fernandes da Cunha. Nunca havíamos morado em uma casa tão grande quanto aquelas. Havia até um jardim e um terraço. Todas as manhãs, no percurso para a escola, eu decidia e desistia de alguma coisa.

A rua que eu atravessava primeiro, no percurso até a escola, desembocava na via principal do bairro. Eu passava pela porta da Igreja do Rosário, onde minha irmã se casou com meu cunhado, que foi meu colega de sala, e entrava numa travessa estreita, onde ficava a casa do nosso professor de matemática. Eu nutria uma paixão secreta pelo rapaz que dava aulas de física, embora coração e desejo vivessem em conflito.

Era muito boa, a sensação de não ser nada além de estudante num curso que sequer tinha nomeação técnica. Formação Geral soava como preâmbulo para uma vocação que viria, ou não, no tempo certo. Estudávamos trigonometria e os sistemas mais complexos da química e da biologia. Em qualidade de ensino, não devíamos nada às particulares, em nossa escola pública e gratuita. Havia até merenda, um luxo.

Depois de poucos metros, na travessa estreita, dobrando à direita, vinha uma via ainda mais apertada, onde mal dava para passar um carro. Eu preferia fazer aquele trajeto, ao invés de seguir em frente e dar de cara com a Avenida Beira Mar, o que seria bem mais agradável. O percurso, até a escola, por lá seria bonito e mais longo. Mas nem era isso, andar mais um pouco. Eu gostava mesmo de seguir aquele itinerário.

O João Florêncio Gomes ficava logo após uma praça rodeada de casas térreas que pareciam ter saído do século XVIII. Era nela que desembocava o quase beco do penúltimo trecho do meu percurso. Eu passava por ela, a grama baixa, os bancos de cimento, o entorno sempre sujo, e alcançava o grande portão de ferro. Dos colegas daquela época, lembro muitos. Um deles, Orlando, tornou-se ministro da República.