De volta ao ninho: a pandemia aproximou pais, filhos, netos e avós

Como os meses de pandemia estimularam o convívio entre gerações

  • Foto do(a) author(a) Kátia Borges
  • Kátia Borges

Publicado em 17 de outubro de 2020 às 00:19

- Atualizado há um ano

. Crédito: foto de acervo pessoal
O professor Pedro Magalhães aprendeu a cuidar da avó de 87 anos para dividir as tarefas com a mãe dele por acervo pessoal

Aos 91 anos, Lila encara com tranquilidade a segunda grande epidemia. Nascida em uma pequena vila na Chapada Diamantina, em 1929, durante o surto de tifo que atingiu a região, ela conta que o médico recomendou isolamento social à sua mãe logo após o parto. “Morreram muitas pessoas na vizinhança naquela época e eu cresci ouvindo essas histórias. Então, para mim, não foi nenhum espanto”, diz, com a calma de quem ainda mantém uma rotina ativa de bordado, leituras e televisão.

Não que esteja imune aos impactos da pandemia  do novo coronavírus. O sono, por exemplo, já não é tão conciliador quanto antes e a saudade dos 13 filhos, 23 netos e 18 bisnetos aperta mais a cada domingo:  “Gosto de casa cheia, somos uma família grande que transforma cada encontro em festa”.  Uma de suas filhas, a psicóloga Lene Oliveira, 66, que mora no interior da Bahia, veio para a capital bem no começo da quarentena. Juntas, e com tempo de sobra, as duas foram inventando algumas levezas para driblar o peso das notícias.

“O colégio onde dou aulas passou a ser online e decidi fazer companhia a ela em Salvador. Pensava que seriam poucos dias, mas o tempo foi passando e aqui estamos nós”, conta Lene, que fez uma pausa nas aulas da pós-graduação. As lições da convivência com a mãe, no entanto, já rendem uma boa tese. “Conversamos muito e tem sido um prazer imenso”, comenta. Para Lila, estar mais tempo com a filha foi a descoberta de uma grande amiga. “Não há tristeza que resista ao fato de estarmos juntas”, diz.

[[galeria]]

Blogueirinha  É também com leveza que a atriz e dramaturga Paula Lice, 40, tem encarado a proximidade ainda maior com a mãe, Nisalva, 75, e a avó, Lourdes, 99. Em casa por mais tempo, por conta do distanciamento social, ela assumiu os cuidados com as duas e foi inventando um cotidiano mais alegre. “Aqui somos três, com temperamentos bem distintos. Minha avó é uma entidade ancestral em transição para algum lugar bem festivo, porque ela já ouve muita música e dança”, explica.

Lourdes, aliás, estreou recentemente no Instagram da neta em vídeos que mostram com muito humor a convivência das duas nas mais diversas situações. Virou uma blogueirinha quase aos 100 e já anda bem famosa nas redes sociais. “Ela é muito bem humorada e damos muitas risadas juntas, tanto que comecei a fazer os vídeos com ela e publicar no meu instagram. É bom para mim, pela criação dessa memória. E sinto que também alegra muito quem vê e comenta com carinho”, diz Paula.

Acostumada ao trajeto quase diário entre Salvador e Santo Amaro, onde dá aulas na UFRB, e a uma rotina agitada, Paula Lice admite que nem tudo são flores nesse período, claro, e o empenho emocional cobra o preço. Mas o lucro compensa. “São muitas aprendizagens simultâneas. Não existe tédio, muito embora exista cansaço e acúmulo de tarefas. Essa parte não é boa. E como, principalmente no começo, a reclusão foi intensa com duas idosas com bastante limitações, esse cansaço virou uma amidalite, felizmente já superada”.

Vindo de uma “uma experiência de solidão” na Costa Rica, onde dava aulas de português para estrangeiros, e de um breve período na Argentina, onde teve o primeiro contato com as notícias sobre a pandemia de covid-19, o professor Pedro Magalhães, 32, vê o reencontro com a família como uma oportunidade de reconexão. Após um processo complicado de repatriamento, isolou-se com pai, mãe, irmão e avó em um sítio no Litoral Norte. “Eles precisavam de mim e eu precisava deles”, diz.

Como toda comunidade isolada e autossuficiente, a vida da família não é sempre um mar de rosas. Há estresse, discussões e conflitos na divisão das tarefas domésticas. Mas o saldo, como faz questão de frisar, é o melhor possível. “Foi ótimo nos reconectarmos, superar as rusgas antigas, encarar os problemas de frente, entender que existe uma parceria maior. Temos planos de uma viagem juntos quando tudo isso acabar”, conta Pedro, que agora divide seu tempo com os cuidados com a avó, de 87 anos. “Eu notei que a minha mãe não estava conseguindo segurar a onda sozinha”, explica ele.

 O senso de cooperação falou mais alto e, assim, Pedro passou a ajudar integralmente em todas as tarefas domésticas. “Nem sempre é fácil, há pontos de estresse, longos debates. Mas, felizmente, temos bastante área verde para andar, respirar e aliviar a pressão”. Agora, além de cozinhar, ele ajuda a administrar os cuidados com a avó: “E pretendo aprender a dirigir para conseguir ser ainda mais útil”.

 Entre gerações Ao falar sobre a quarentena em família, o ator curitibano Ricardo Nolasco, 33, toma até um susto: “Nossa, agora que me toquei de que já são seis meses!”. Morando com os pais e a avó de 101 anos, ele sai de casa raríssimas vezes, desde março, justo para protegê-la. “Aqui a precaução é total, conflito de gerações na veia, mas encaramos de frente o fato de não poder fugir dos problemas”, conta. A virtualidade tem sido a saída para seguir trabalhando e manter o cotidiano nos eixos.

“Todo mundo teve que adaptar seus trabalhos para o virtual. Eu fazendo peças pela internet e consultas de tarot, minha mãe dando aulas de espanhol, meu pai fazendo exposições de artes visuais”, diz. O engraçado é que Nolasco acaba sendo o chato da família, ao pegar no pé dos pais para que não saiam sem necessidade e não esqueçam a máscara: “Olha, às vezes, preciso dar umas broncas neles, o que é bem divertido. Essa situação é terrível, desesperadora, mas é bom estar junto, dividir as angústias”.

Uma das maiores angústias, Ricardo conta, é perceber que um ano de projetos artísticos foi pelo ralo: “Tudo cancelado e desprogramado! E ainda parece que só a gente que tá fazendo o tal do isolamento”. Mas a rotina diária até que se resolveu a contento, e de modo bem original: “Meu pai faz a maior parte, roupas e louças, além de cuidar da minha avó. Eu e minha mãe dividimos a faxina. Acho que alcançamos o equilíbrio nas funções. De vez em quando, rola um conflito, mas é normal, né?”.

Morando em um condomínio, no qual já conviviam bastante, embora vivendo em casas diferentes, a família da professora Ivana Britto, 57, tornou-se ainda mais unida nos últimos seis meses. O principal desafio foi conscientizar a turma toda, formada por mãe idosa, filhos, noras, genros e netos, sobre a necessidade do distanciamento social e do uso de máscaras: “Aqui, todo mundo gosta de sair, passear, confraternizar, então ficamos bem nervosos no começo, eu e meu marido. Mas o diálogo foi o caminho”.

 Mais unidos Entre adultos, crianças, idosos e jovens – há pessoas de diversas faixas etárias na família que habita o condomínio –, estabeleceu-se o consenso de que a responsabilidade sobre a saúde de cada um é a meta coletiva. Ainda assim, Ivana diz que não relaxa na vigilância: “Acho que voltei até a ver meus filhos como crianças. Não pego no pé, mas verifico se todos têm máscaras e álcool em gel”. O resultado é a travessia tranquila de um cenário perturbador: “O que mais me impressionou, entre todos, foi a generosidade”.

Não chegou a ser exatamente uma surpresa, já que sempre estiveram próximos. Mas até onde poderia haver conflito, tudo fluiu bem. Serviços básicos de manutenção suspensos temporariamente, os pequenos consertos na área comum e a limpeza da piscina não causaram transtorno. “Fazemos almoços coletivos que tornam tudo mais alegre”, diz. Dificuldade mesmo só a saudade do filho que mora em Brasília: “Ele está trabalhando em sistema de home office e monitoro de longe. Coisa de mãe”.

Violência Infelizmente, a convivência amorosa mostrada nesta reportagem não reflete a convivência de boa parte das famílias brasileiras que têm idosos em casa. As denúncias de violência física e psicológica, além de abuso econômico, já ultrapassam 17 mil casos, apenas nos primeiros meses de pandemia, de março a junho, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Para se ter uma ideia, ao longo de todo o ano passado, foram registrados 48 mil casos, no total, onze mil a mais do que em 2018.

Com a violência crescendo sem parar, especialmente em São Paulo, que lidera as ocorrências em todo o país, o Ministério da Saúde criou um programa de proteção em várias capitais brasileiras e ampliou o alcance do serviço de denúncia de maus tratos, o Disque 100, que pode ser acionado pelo próprio idoso ou por vizinhos e amigos. Na Bahia, a Defensoria Pública do Estado também acolhe denúncias via fone, 129 e 0800 071 3121. Uma triste realidade que precisamos enfrentar.