Demolições e desapropriações na Cracolândia de São Paulo são ilegais, dizem promotores

Para promotores, requisição administrativa usada como argumento jurídico para ação em área dominada por usuários de drogas não caberia demolição de imóvel

Publicado em 25 de maio de 2017 às 06:00

- Atualizado há um ano

Promotores e defensores públicos disseram que a justificativa da prefeitura de São Paulo para fazer as demolições e desapropriações de imóveis na Cracolândia é ilegal. Segundo eles, a requisição administrativa prevista na Constituição, usado como argumento jurídico para a ação do município na área, é temporária e não implica na demolição do imóvel.

Segundo o defensor Rafael Lessa, o Artigo 5º da Constituição, Inciso 25, que vem sendo utilizado pela prefeitura como embasamento jurídico para dar seguimento às desapropriações e demolições na região, “não tem nada a ver com o que vem sendo feito pela prefeitura”.

“Ele [artigo] não poderia ser usado pela prefeitura. A requisição administrativa é temporária e não vai implicar na demolição do imóvel, como a prefeitura vem fazendo, porque isso não tem temporalidade nenhuma. E se tivesse [requisição administrativa], ela deveria ter sido publicada [pela prefeitura]. E não saiu nada no Diário Oficial sobre isso. Ela tem que ser temporária e regulamentada em lei federal e não tem lei federal regulamentando esse tipo de intervenção em imóveis por tráfico de drogas. Não vejo previsão legal desse tipo de atuação”, disse Lessa.

Promotores e defensores públicos fizeram ontem (24) uma coletiva na sede do Ministério Público e criticaram a prefeitura de São Paulo pelas ações na Cracolândia. Eles evitaram comentar a operação policial do último domingo (21), autorizada pela Justiça, na Cracolândia, mas criticaram as ações feitas na região após a operação policial.

Na terça-feira (23), em entrevistas na Cracolândia e também na prefeitura, o secretário de Justiça Anderson Pomini disse que todos os prédios de dois quarteirões da região da antiga Cracolândia serão demolidos e que, para que isso seja possível, a prefeitura utilizaria desse dispositivo constitucional, que, segundo ele, autorizaria a requisição administrativa sempre que houver um iminente interesse público, sem a necessidade de autorização judicial dos proprietários dos imóveis para a demolição, indenizando proprietários e moradores posteriormente.

LiminarOntem (24), a Justiça de São Paulo proibiu que a prefeitura paulistana continuasse a fazer remoções forçadas e demolições na área da Cracolândia. A liminar lembrou o caso ocorrido na terça-feira quando três pessoas ficam feridas pela queda de uma parede durante a derrubada de um dos imóveis. A partir disso, o magistrado determinou que não poderão ser feitas novas remoções sem o cadastramento prévio dos moradores.

Por meio de nota, a prefeitura comentou sobre a decisão judicial dizendo que “nunca foi intenção da administração municipal fazer intervenções em edificações ocupadas sem que houvesse arrolamento prévio de seus habitantes”. Segundo a prefeitura, o cadastramento das famílias estão em andamento e as pessoas que não quiserem desocupar os imóveis “serão encaminhadas para opções de habitação social” e, aqueles que não aceitarem isso, “deverão ser objeto de ações judiciais”.

Segundo os defensores públicos, a liminar judicial proíbe que a prefeitura faça qualquer intervenção nos imóveis desocupados.

Projeto RedençãoOs promotores e defensores disseram que a prefeitura, com as ações realizadas na Cracolândia desde domingo, descumpriu um pacto que estava sendo firmado entre as partes desde o início deste ano nas discussões feitas sobre o Projeto Redenção, criado pela gestão do prefeito João Doria. Entre as medidas que foram descumpridas pela prefeitura está a de que não haveria um Dia D, ou seja, uma grande operação policial na região.

“A partir da operação policial, as informações que tivemos, para nossa surpresa, é de que a Guarda Civil, uma guarda sob comando da prefeitura, tomou conta do território, mas não para acalmar a situação ou acomodação daquela região para o atendimento da saúde e assistencial. A tônica do projeto é de que ele seria capitaneado pela saúde e pela assistência social e que a atuação da polícia seria secundária de, na retaguarda, garantir o trabalho das equipes de assistência social e de saúde”, disse o promotor Eduardo Ferreira Valério.

Segundo Valério, a operação tinha que ser paulatina, discreta, quase invisível, de forma que os agentes pudessem abordar as pessoas com uma estratégia de singularidade, atendendo caso a caso. “Infelizmente a Guarda Civil entrou, após a operação policial, de maneira dura, repressiva, revistando bolsas, pessoas e moradores, impedindo a livre circulação e expulsando usuários”.

A defensora Luiza Lins Veloso disse que a Defensoria Pública recebeu diversas reclamações de moradores da região falando sobre o fechamento de comércios sem que eles pudessem retirar suas mercadorias do local, de imóveis bloqueados com pessoas sendo retiradas só com a roupa do corpo e até de imóveis sendo lacrados com animais dentro dele.

“A área da Cracolândia é uma zona especial de interesse social e não pode ser dada qualquer destinação a ela. É uma área que tem que obedecer uma destinação específica. Uma intervenção urbanística ali deve observar participação popular”, disse Luiza.

Internação compulsóriaOs promotores e os defensores criticaram também o fato da Procuradoria da prefeitura ter entrado com um pedido de tutela de urgência para que médicos municipais avaliem a necessidade de usuários de crack serem internados compulsoriamente. Se o pedido for atendido, os usuários deverão ser encaminhados para o Projeto Recomeço, programa estadual de combate ao vício.

“Isso chegou agora para a gente. Vamos responder até amanhã. Se trata de um pedido genérico, falando simplesmente de levar pessoas que vagam pelas ruas à força até o local onde existem médicos. Isso afronta a Lei Antimanicomial”,  disse o promotor Arthur Pinto Filho.

Outro ladoProcurada pela reportagem da Agência Brasil na noite de ontem, a prefeitura informou que o secretário municipal de Saúde, Wilson Polara, disse que "não há nenhuma ação da prefeitura no sentido de internação em massa, muito menos caçada humana como dizem os promotores". Segundo a prefeitura, uma prova disto é a implantação, na próxima sexta-feira (26), de um Centro de Apoio Psicossocial, com dois psiquiatras de plantão.

A prefeitura também informou, na nota à reportagem, que a ação na Luz foi executada pela polícia. "O Projeto Redenção está sendo posto em prática de acordo com as novas circunstâncias. Os imóveis que estão sendo interditados apresentam diversas irregularidades. A Secretaria Municipal de Justiça reitera que as ações de demolição ocorrem de acordo com a legislação, em razão do iminente perigo público, conforme prevê o Artigo 5º da Constituição, no Inciso 25. Não houve demolição de nenhum imóvel ocupado. Equipes da Secretaria de Habitação estão concluindo o arrolamento de todos os moradores. A prefeitura tem entendimento distinto do manifestado pelos promotores sobre a requisição administrativa", informou.