Dentro da noite veloz

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  • Paulo Sales

Publicado em 24 de maio de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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A insônia é território da angústia. Um território opaco e espesso, onde vigília e inconsciência se irmanam e se desconectam, formando um todo aterrador. Um estado de espírito alterado, como se constituído de vontade própria, que vara a madrugada lançando centelhas no sono por vir. Uma neblina sem ternura ou aconchego, que avança na cinza das horas. No quarto gelado, a temperatura do corpo é glacial perto da temperatura da mente, uma brasa viva movida a pontos de interrogação.

A insônia desarruma os desvãos da alma. Desaloja episódios cuidadosamente esquecidos, remexe no arquivo morto de paixões cremadas, impressões enevoadas pelo pouco uso, cidades há muito visitadas e das quais guardamos só rostos e esquinas. Traz de volta versos lidos há décadas e papéis imaginários. Um desassossego me invade e me impede de ler o livro de Maupassant na mesa de cabeceira, fuçar as redes sociais ou rever pela sétima vez a sequência final de um filme qualquer.

Olho para a insônia e ela me olha de volta, desolada, como se me pedisse desculpas. Deixo a cama e venho à biblioteca, onde rabisco este texto sem rumo, enquanto contemplo os objetos espalhados nas estantes. O que será deles, caso sobrevivam ao meu fim? Ficarão guardados em uma caixa de sapatos? Depositados em um canto escondido no futuro apartamento de minha filha? Serão doados, jogados fora, convertidos em poeira e desimportância?

Toda essa memorabilia significa quase nada se despida do valor afetivo que o seu dono destina a cada peça. São singelos ícones de uma linha do tempo imprecisa, que no decorrer das décadas receberam sucessivas camadas de sentimento e saudade.

Meio empoeirados, eles permanecem ali como cúmplices de crimes inexistentes: o delicado anjo de porcelana que pertenceu ao meu avô paterno; o São Paulo dado por minha mãe; a calçadeira de osso que foi de meu pai; o machadinho de pedra-sabão adquirido um dia em Ouro Preto, no qual se lê uma velha frase minha; o simpático índio de madeira comprado no Chile; o rosto de madeira com expressão irônica que me remete a um dia agradável em Montmartre.

Há também uma pedra bruta com cristais incrustados, presente de uma garota mineira quando estive em Curvelo, e um velho par de sapatinhos azuis, bem gasto, que me faz lembrar dos primeiros anos de minha filha, e de como eu amava vê-la correndo com esses sapatinhos. Ou ainda o elefante de Dalí comprado em Barcelona e o elefante tailandês comprado em Amsterdã. Como todos esses objetos, também os livros, discos, fotografias, pôsteres, poemas dispersos, originais nunca publicados e velhas correspondências devem sobreviver a mim.

Reunidos neste quarto, eles refazem em silêncio o percurso sinuoso de minha breve passagem pelo mundo. Daqui a 100 anos, alguém vai abrir as páginas de algum desses livros? Vai descobrir naqueles originais guardados um talento inaudito? Vai se emocionar com as cartas que falam de anseios malogrados ou sentimentos represados? Para todas as perguntas, a resposta é: muito provavelmente, não. Tenho consciência da minha insignificância. Sei que essas quinquilharias que hoje me acompanham nesta noite insone serão apenas testemunhas do nada.