Diversidade da Festa de Iemanjá mostra que ela abraça todos como seus filhos

Rainha do Mar acolheu povo de santo, estrangeiros, gente sem religião e até bêbados

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 2 de fevereiro de 2020 às 17:52

- Atualizado há um ano

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Festa de Iemanjá: amálgama de fé (Foto: Tiago Caldas) Em um semicírculo de pessoas, o batuque convoca a Pombagira. Perto dali, uma mulher vestida de sereia é saudada como divindade, um samba de roda frenético favorece ao transe, um bêbado cai no chão tentando carregar um balaio de flores e uma criança de colo dorme no ombro da mãe enquanto esta dança em uma roda de pagode. Tudo acontece quase ao mesmo tempo, a poucos metros de onde um sacerdote católico reza uma missa. Isso mesmo! Uma missa!

Para uma divindade tão complexa, diversa, repleta de mitos, nomes e cultos, não se podia esperar menos. No ano em que foi tombada como patrimônio imaterial de Salvador, a Festa de Iemanjá abraçou a todos. Ruas do Rio Vermelho ficaram lotadas desde a noite do dia 1º. Gente das mais variadas origens, credos e raças juntaram-se em um amálgama de fé. Iemanjá é reza forte (Foto: Tiago Caldas) O professor de Ioga Cristiano Soares, 39 anos, não tem religião. Por outro lado, tem desenhado por todo o corpo nada menos que dez tatuagens que remetem ao mar, às águas, enfim, à Iemanjá. Paraense, estava visivelmente emocionado em seu primeiro dia 2 no Rio Vermelho. A devoção começou ainda na infância. “Desde criança! Minha família sempre teve ligação com Iemanjá. Tem sido incrível viver esse momento aqui em Salvador”.

Quem é capaz de dizer que o paraense sem religião tem mais ou menos fé que o pescador Antônio Santana, 58 anos? Seu Antônio diz que, para ele, é impossível não acreditar em Iemanjá. “Vivo em cima do mar. Minha atividade é só pesca mesmo. Iemanjá é que dá meu alimento, meu sustento, mantém minha família”, diz Antônio, que é tocador de atabaque em diversos terreiros.  

Do paraense sem religião ao pescador de terreiro, dos que creem na Iemanjá negra de seios fartos aos que acreditam nas Janaínas e Iaras dos indígenas e até nas sereias europeias, quando chega dia 2, no Rio Vermelho, todas as diferenças se desfazem. Tanto que a mulher vestida de sereia, uma representação que tem origem na mitologia europeia, vira alvo de devoção e sequer consegue dar uma entrevista. "Meu Deus, a mulher se veste de sereia e o povo tá achando que ela é a própria Iemanjá", brincou a advogada Patrícia Vieira, 33 anos.  Cada um corre atrás da sua fé (Foto: Tiago Caldas) Fé é isso. Cada um tem a sua. E na festa de Iemanjá todas as fés convivem bem. “Aqui você vê a fé do povo. Aqui você vê quantas pessoas cultuam essas energias, quantas pessoas têm fé nas forças da natureza. Enquanto houver mar e água salgada haverá esse culto”, disse Leandro de Xangô, zelador do Centro de Umbanda Jequiriçá de Sultão das Matas, cujo centro sequer comemora o dia de Iemanjá em 2 de fevereiro.

“Nossa festa de Iemanjá é no dia 8 de dezembro, por conta do sincretismo com Nossa Senhora da Conceição. A Umbanda tem isso muito forte. Mas fazemos questão de estar aqui no dia 2 também”, ressaltou Leandro.

Das grandes conhecedoras da mitologia dos orixás, Mãe Cici, griô (contadora de histórias) da Fundação Pierre Verger, diz que Iemanjá alimenta, cura, protege sem distinção de cor, raça, idade, gêneros ou classes sociais.

Talvez por isso, vindas do interior de São Paulo, a professora universitária Cristina Bruno e a sua filha, Marcela Bruno, tenham se sentido tão bem na sua primeira vez nas ruas do Rio Vermelho. “Ah, nós saíamos daqui renovadas. A gente bota os pés na Bahia e já sente algo diferente. Dessa vez ainda conseguimos vir à Festa de Iemanjá. É muita energia boa!”, comemorou Cristina.   

Ecumênico Sob o toldo montado por um centro umbandista na Praia do Rio Vermelho, ele atraía muitas atenções. Marcos Paulo Ribeiro de Almeida, 44 anos, vestia um hábito de bispo católico e fazia um sermão cristão em plena Festa de Iemanjá. "Só se vê na Bahia", diziam, emocionadas, algumas pessoas que participavam da celebração. Dom Marcos Paulo: "Viva Iemanjá" (Foto: Alexandre Lyrio) Em sua pregação ecumênica, dizendo-se bispo da Igreja Católica Independente, Dom Marcos exaltava principalmente Jesus Cristo, mas também evocava Iemanjá. “Viva Jesus Cristo! Viva Iemanjá! A fé das pessoas é diversificada e cabe à igreja entender isso”, afirmou o bispo, explicando que sua vertente não responde ao papa.

Há cinco anos, Dom Marcos celebra a missa a convite do Centro Espírita Deus Reina na Umbanda, quando defende a diversidade nas formas de ser, agir, pensar e crer. "Eu costumo dizer que embora estejamos em embarcações diferentes, navegamos no mesmo mar da vida e buscamos o mesmo porto seguro".

Apesar de haver sincretismo de Iemanjá com Nossa Senhora da Conceição, a festa no Rio Vermelho é considerada a única das grandes celebrações populares da Bahia exclusiva das religiões de matriz africana. Ainda assim, o padre não acha invasivo participar do festejo enquanto católico. "Defendo o ecumenismo", afirmou.

Assim, Iemanjá, como água que é, se molda de acordo com a forma dos recipientes. Por isso, ela perpassa tanto as facetas religiosas quanto as maneiras profanas de celebrá-la. Dona de todos os oris (cabeças), ela está em todas as consciências. Assim, cada ser que participa das charangas, batucadas, maracatus, pagodes, seja tomando cerveja ou gim, Iemanjá tem a todos como filhos.

Tá liberado até servir a comida de Ogum no dia 2 de fevereiro. Sim, porque as feijoadas se multiplicaram nas dezenas de eventos. Na Casa da Felicidade, Rua da Paciência, Jorge X abriu as portas para quem quisesse comer o feijão. 

Mas, e o bêbado? Que fim levou o bêbado que caiu com as oferendas? Como não poderia ser diferente, Iemanjá o acolheu. Suas águas curam qualquer ressaca.

*A cobertura das Festas Populares do CORREIO tem patrocínio da Claro, Hapvida, Salvador Bahia Airports  e Sotero Ambiental além de apoio instituicional da Prefeitura de Salvador.