Do barril: denúncias de poluição sonora nos Barris quase triplica em um ano

Antigo lar de Glauber Rocha e sede da primeira biblioteca pública da América Latina, bairro vive impasse entre moradores

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  • Fernanda Santana

Publicado em 14 de fevereiro de 2019 às 04:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Betto Jr./CORREIO

Seu José olhava para o relógio fixamente no fim do expediente. Quando o ponteiro marcava 22h, batia três vezes um ferro no chão. Era o código para os clientes do Bar Espanha, nos Barris, irem embora. Assim foi até 2012. A partir de 2017, surge um novo momento no bairro. Fechado há dois anos, o bar reabre como Velho Espanha, com shows e eventos culturais. Outros espaços também surgem no entorno. Novamente na rota da boemia, problemas como o barulho começam a dividir os moradores.

De 2017, quando ocorre a reinauguração do espaço, a 2018, as queixas de poluição sonora do bairro, que eram escassas, quase triplicaram: de oito, passaram para 21. Nos dois primeiros meses de 2019, foram duas denúncias. O bairro, essencialmente residencial e endereço da mais antiga biblioteca pública da América Latina, conhecida como Bblioteca dos Barris, não figura entre os dez mais barulhentos de Salvador. No começo do ano passado, Cajazeiras liderava, seguida de Itapuã. Mas, os acostumados à calmaria do bairro sentem a diferença.

Depois de dois anos fechado, o Espanha voltou ao catálogo etílico-cultural de Salvador em 2017, comandado pelos amigos e moradores dos Barris Arthur Daltro e Uiara Araújo, 32 anos. Dessa vez, traz consigo novos hábitos. Exemplo são as apresentações no espaço interno do bar, como ocorre desde sua inauguração, em 27 de julho de 2017.

É quando grupos de moradores começam a reclamar do alcance e da altura do som - e problemas ligados à quantidade de clientes, distribuídos também em mesas no asfalto da Rua General Labatut, tanto do Velho Espanha, como de estabelecimentos vizinhos.

De porta em porta Na ausência de uma associação de moradores, o diálogo ocorre de porta em porta. Os grupos do WhatsApp são pulverizados e não costumam arbitrar sobre as demandas gerais. Numa das casas, o CORREIO encontrou Ivo Bastos, 71. Até o ano passado, o funcionário público vivia no mesmo prédio onde funciona o Velho Espanha. O som dos shows, segundo ele, começou a incomodar. Não só a ele, mas também à esposa.“Ela começou a se sentir mal, ficou insustentável”, conta Ivo.O funcionário público chegou a procurar o dono do imóvel, João Batista. Saiu sem definição para o problema. “Mas ele disse que quem intercede é quem alugou”.  Ivo Bastos, 71 anos, se mudou com a esposa de apartamento em cima de bar (Foto: Betto Jr./CORREIO) Sem solução por parte do dono do imóvel, a família saiu, então, do edifício de dois andares, hoje ocupado apenas pelo bar, no térreo. Da casa própria, passou a pagar aluguel de R$ 1,8 mil na região. Ao ouvir as queixas de moradores pela reportagem, João Batista respondeu: “Fiquei sabendo que os moradores gostam. O bar está levando o nome dos Barris”.

Os mais críticos tentam se organizar num coletivo. Tom Oliveira, 63, fundador do Espaço Atman, Centro de Yoga e Psicologia, por exemplo, diz precisar usar um abafador de som e um fone para esquecer o barulho lá fora. Ele até começou obras na clínica, dependente do silêncio, para impedir a entrada de som.

“O sucesso acontece à base de algumas pessoas do bairro. Não queremos que eles fechem, quero que eles funcionem... mas precisa haver um acordo, porque os efeitos doentios são inevitáveis”, opina Tom, desde 2003 lá.

Mas nem tudo são reclamações. Moradora dos Barris por quase toda a vida, Mariagnes Sampaio, 59, brinca, a respeito das discussões.“Sempre aconteceram coisas aqui. Festa de rua, sonzinho... nunca vi bagunça. Acho que não tem nada disso”, afirma Mariagnes.Apesar das queixas, a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop) informou que não há nenhuma autuação sobre uso indevido de som no Velho Espanha. Os eventos estão legalizados e é inexistente qualquer autuação por som alto naquele endereço. Na capital, até 27 de janeiro, foram 83 notificações. 

Acordo As apresentações no interior do bar começam, geralmente, às 20h, e terminam às 22h. O horário faz parte de um acordo firmado entre o próprio Tom e administração do Velho Espanha.“Tem que ver o outro lado. Há quatro meses, coloquei o apartamento à venda porque, mesmo na sala [cômodo virado para o lado inverso ao do bar] é essa agoniação”, compartilha a oficial de Justiça Deusimari Bessa, 52.  Antes da abertura, os proprietários Arthur e Uiara garantem: conversaram com os moradores sobre como tornar o bar sustentável para os Barris, onde moram desde 1997. Nos primeiros meses, fizeram um projeto de isolamento acústico nas janelas do fundo. No entanto, o som ainda escapa para toda a vizinhança. A administração também diz ter participado de ao menos cinco reuniões com a comunidade. Mas, parece ter faltado adesão e acordos

Nos últimos 10 meses, foi Tom quem coordenou as reuniões para pensar possíveis mudanças na gestão do bar. Dos encontros, saíram sem qualquer acordo. "Na verdade não houve projeto, não houve nada, ele não fez nada", afirma ele. Do lado de Arthur, a defesa: “Tudo é feito legalmente. O Espanha é muito mais bem visto do que malvisto. Trazemos músicos do bairro para cá, um som mais orgânico. Movimentamos o lugar. No dia da inauguração, esgotamos as cervejas de todos os bares da rua”.

Vizinhança As queixas de incômodo do som não se resumem apenas ao bar centenário, que foi reestruturado há dois anos. Ao lado do Espanha, o Bar do Everaldo é o outro grande aglutinador de público na General Labatut.

Quando a cerveja faz efeito, a rua começa a ser feita de banheiro a céu aberto. O fedor de urina paira no ar, como percebeu a reportagem numa visita ao bairro numa sexta-feira, antes do pico da movimentação, entre 19h e 23h.“É uma coisa que não podemos controlar. Colocamos um funcionário na rua do lado, pedimos banheiros químicos em eventos maiores...”, defende Arthur.Os responsáveis pelo Espanha citam, inclusive, o espaço vizinho. “Eu já até varri lixo dele na manhã seguinte. Mas a gente não consegue tomar conta da vizinhaça”, diz Uiara. Procurado, Everaldo não atendeu às chamadas. Como o fedor e a sujeira não esperam, seja quem for o responsável, Edson Balbino, o Caju, 62, dono de um sebo em frente à Biblioteca Central há 25 anos, decidiu proteger, por conta própria, seus livros. Os clássicos vendidos por Caju correriam, não fosse isso, ainda mais risco de estragar.

“Acho que gasto R$ 50 por semana para limpar. Isso só vai melhorar quando as coisas começarem a ser organizadas. Todo dia eu vejo a agonia que fica”, calcula. A Limpurb diz lavar, varrer e recolher lixo do local diariamente, entre 22h e 23h. Não é a realidade que parecem viver os moradores. Diariamente, como Caju, muitos deles limpam as próprias calçadas. Lixo espalhado pela Rua Travessa dos Barris, atrás do Velho Espanha, na manhã seguinte a um evento no espaço.  (Fotos: Leitor CORREIO) Barril e babado O antigo Espanha foi inaugurado em 1918 por três irmãos espanhóis. Coube a Seu Zé, até 2012, administrar a preferência de moradores e clientes, de intelectuais a nem tão intelectuais. O negócio dos espanhóis faz parte da consolidação do bairro como um local de boemia. No entanto, sempre teve ligação com a vida cultural, estendida para muito além do Espanha. Ali, já moraram, por exemplo, Moraes Moreira e Glauber Rocha. Também era onde o presidente Getúlio Vargas gostava de se hospedar quando em Salvador, na esquina da General Labatut com a Comendador Gomes da Costa. Bairro predominantemente residencial voltou à lista dos pontos boêmios de Salvador (Foto: Betto Jr./CORREIO) O bairro essencialmente residencial, segundo a Secretaria de Desenvolvimento Urbano, é uma zona de confluência. A razão do nome é geralmente relacionado com um hábito do passado: retirar "barris" de água de uma roça próxima. Entre o Politeama, Dique do Tororó, Avenida Sete e Dois de Julho, os mais apaixonados acreditam viver no coração da cidade. Por questões geográficas, mas também culturais. A Biblioteca Pública do Estado da Bahia, a primeira biblioteca pública da América Latina, é citada como marco inaugural do florescimento do bairro, nascido nos anos 40. A pesquisadora Carlota Gottschall explica: "É um momento cultural importantíssimo, porque foi inaugurado na década de 70. Um pouco depois [em 1986], com a sala de cinema Walter da Silveira [localizada dentro da biblioteca], as pessoas começam a sair dos filmes para os bares próximos, como o próprio Espanha, depois o Quixabeira”, afirma. Biblioteca Pública do Estado da Bahia - a Biblioteca dos Barris - é vizinha dos bares (Foto: Arquivo CORREIO) A construção do Terminal da Lapa também merece vívida lembrança. A partir de 1982, o bairro de famílias de classe média alta passa por uma verdadeira revolução, diz Carlota, autora do livro Centro da Cultura de Salvador. O Barris começa a ser ocupado por moradores com renda mais baixa. A renda dos 4,8 mil habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, não ultrapassa R$ 1.380. Por outro lado, a facilidade de chegar ao bairro, com a proximidade do terminal, impulsiona a ida de visitantes à região. Os cinéfilos da Sala Walter da Silveira deixam de ser o público principal.

A procura pelo bairro tem seu auge até 2004, quando o Bar Quixabeira, no Casarão Rosa, é fechado. O Quixabeira, junto a duas saunas e de uma boate gay hoje fechadas, aproximam o público LGBTQ+. Ainda em setembro de 2001, mostramos as disputas pelo lugar. “Isso aqui virou o inferninho”, falou um morador, à época, sob anonimato.

O sucateamento da Biblioteca dos Barris, onde já aconteceram shows de artistas como Saulo, também esvazia o bairro. Os eventos passaram a acontecer com menor frequência. Mas, segundo a Fundação Pedro Calmon, não deixaram de acontecer. No próximo dia 15, por exemplo, ocorre um baile de carnaval inclusivo para pessoas com deficiência, com presença de suas bandas.

A mudança começa timidamente a partir de 2006 e, mais intensamente, nos anos de 2017 e 2018. O "inferninho" volta a queimar.

No ano de 2006, depois de varar a madrugada na busca por um bar aberto, um grupo de moradores dos Barris cria o Movimento Etílico dos Barris (Meb), com a meta de valorizar o bairro por meio de eventos e da ocupação da região. "Manter integridade e harmonia alcóolica dos Barris", explica a ata. Um e outro voltam a torcer o nariz.“Na minha opinião, em todo lugar que tem gente, existe discordância. É legítimo. O som, por exemplo, só vai até às 22h. Nosso esquente é a partir das 17h, 17h30”, acredita Maria Manuela Barros, 30, uma das integrantes.São eles quem organizam a saída do Bloco Moraes Moreira, desde 2013, toda quarta-feira antes do Carnaval de Salvador.

O Quixabeira retorna com novo nome e propostas em junho de 2017 – aulas de defesa pessoal, apresentações artísticas e encontros – atraído justamente pela revalorização da área e pelas histórias passadas. “Trazemos as memórias que o bairro e o bar têm. A ideia é que não se nega as memórias do que se aconteceu, mas se constroem outras narrativas”, explica Tiago Cohen, 29, integrante do movimento e morador dos Barris.

As outras narrativas da qual fala Tiago nem sempre convivem pacificamente. Quando ouve os relatos de moradores, a pesquisadora Carlota arrisca um palpite: "Temos que levar em consideração que são conflitos de geração também. É natural que algumas pessoas se sintam invadidas". Cálculo do IBGE mostra que 13% dos moradores do bairro são idosos. Em 2011, na matéria de Marcos Uzel, intitulamos: “Barris é babado”. E continua sendo. Mas nada impede que seja mais harmônico. 

*Com supervisão da editora Mariana Rios