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O Caso do Homem Errado, vencedor do prêmio de Melhor Filme no 9º Festival Internacional de Cine Latino, tem lançamento nesta sexta (27)
Vanessa Brunt
Publicado em 27 de abril de 2018 às 08:30
- Atualizado há um ano
Em 14 de maio de 1987, o jovem operário Júlio César de Melo Pinto estava chegando do trabalho quando, nas proximidades da sua casa, ouviu disparos de arma de fogo. O trabalhador resolveu verificar o acontecido e, ao se aproximar do local, foi confundido com assaltantes de um supermercado. Morto a tiros por polícias, Júlio não teve a oportunidade da defesa. O crime, ocorrido na zona leste de Porto Alegre, ficou conhecido, após repercussão e comoção nacional, como o Caso do Homem Errado.
A investigação, que apurou a forma como o operário foi assassinado e confirmou que ele não era um criminoso, foi realizada em meio a uma forte pressão exercida por movimentos sociais e reportagens publicadas na imprensa. O caso ganhou notoriedade ainda maior após a divulgação de fotos que mostravam Júlio sendo colocado com vida na viatura, chegando, 37 minutos depois, morto a tiros no hospital. A ação da Polícia Militar colocava, assim, em pauta, um possível racismo. Afinal, se Júlio não fosse negro e, sim, um branco, estaria ele morto? Documentário O Caso do Homem Errado revive o caso de Júlio e debate a realidade racista no Brasil (Foto: Reprodução) O documentário A diretora Camila de Moraes, 30 anos, não tinha completado nem mesmo um ano de idade quando a situação veio à tona. A produtora Mariani Ferreira, 29, não havia sequer nascido. Mas as jornalistas, ambas negras, sabem bem que a situação atual ainda não é tão diferente no país. Por este motivo, as duas se uniram para não deixar essa história, símbolo de tantas outras, morrer como Júlio. Confira o trailer: Por meio de pesquisas e depoimentos, as jovens cineastas relembram o episódio no documentário O Caso do Homem Errado, que entra em cartaz na capital baiana a partir desta sexta-feira (27), na SaladeArte Cinema do Museu, localizado no Corredor da Vitória. Após a exibição do filme ocorrerá um debate com a presença da diretora, da professora, doutora em Teoria e Crítica da Literatura e Cultura pela UFBA, Denise Carrascosa, e do jornalista e escritor Edson Cardoso. A produção foi vencedora do prêmio de Melhor Filme no 9º Festival Internacional de Cine Latino (Foto: Reprodução) Na obra, que ganhou o prêmio de Melhor Filme no 9º Festival Internacional de Cine Latino, a história do jovem é contada através de depoimentos como o de Ronaldo Bernardi, o fotógrafo que fez as imagens que tornaram o caso conhecido, da viúva do operário, Juçara Pinto, e de nomes respeitados da luta pelos direitos humanos e do movimento negro no Brasil. “Matar por racismo não é simplesmente ‘matar negros’, é matar uma grande parte da sociedade brasileira. Essa produção não é somente para que nós, negros, possamos visualizar e debater. É para todos, porque a consequência, o retrocesso e o atraso da evolução alcança a todos. E, infelizmente, nos dias atuais esse tipo de situação tem acontecido com ainda mais frequência. Encontramos no audiovisual um meio para discutir isso relembrando historicamente a importância do assunto através de um personagem que tanto nos diz, mesmo sem ter tido sua chance de ter voz”, pontua a editora Camila de Moraes. Segundo dados da CPI, um negro morre a cada 23 minutos no país (Foto: Divulgação) Ainda hoje A produção independente, feita pela produtora de cinema gaúcha Praça de Filmes, demorou oito anos para conseguir recursos financeiros e ser, finalmente, gravada em 2016. “Não achávamos suporte. O tema não interessava para essa indústria que é majoritariamente branca e masculina”, conta a diretora. O documentário iniciou o circuito comercial nacional em Porto Alegre no mês de março, numa trágica coincidência, uma semana após a execução da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, no Rio de Janeiro.
Além do caso que dá título ao filme, a produção discute ainda as mortes de pessoas negras provocadas pela polícia. A Anistia Internacional, inclusive, fala de genocídio da juventude negra devido ao grande número de jovens negros assassinados no país. O filme também apresenta dados atuais sobre essa violência contra a comunidade negra. Segundo dados da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens, todo ano 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados. São 63 por dia. Um a cada 23 minutos. A CPI toma por base os números do Mapa da Violência, realizado desde 1998 pelo sociólogo Julio Jacobo Wasilfisz a partir de dados oficiais do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde. O último Mapa da Violência contabilizou que cerca de 30 mil jovens são assassinados por ano no Brasil e 77% são negros. Ainda de acordo com o Mapa, a taxa de homicídios entre jovens negros é quase quatro vezes a verificada entre os brancos, 36,9 a cada mil habitantes, contra 9,6.
Cinema negro Segundo dados apresentados no final de janeiro pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), que fazem parte do estudo Diversidade de Gênero e Raça nos Lançamentos de 2016, dos 142 filmes de longa-metragens lançados comercialmente no período, 75,4% deles foram dirigidos por os homens brancos. Na outra ponta desta tabela, as mulheres negras não assinaram a direção, o roteiro ou a produção executiva de nenhum filme nacional naquele ano. A diretora Camila de Moraes espera que o projeto possa incentivar outras produções cinematográficas de mulheres negras (Foto: Divulgação) O estudo mostra que 19,7% de mulheres brancas dirigiram longas. Os homens negros dirigiram 2,1%. O roteiro desses filmes também foi escrito principalmente por homens brancos, 59,9%, mulheres brancas, 16,2%, e parcerias entre homens brancos e mulheres brancas, 16,9%. Os homens negros foram roteiristas em 2,1% dos filmes e estiveram em parcerias com homens brancos em 3,5%. “Diante desses dados é preciso criar medidas específicas para garantir um olhar mais plural, pois essas produções que temos são os olhares que vão construir o imaginário das novas gerações, e essas produções são feitas, na maioria das vezes, por homens brancos. As disparidades que vemos são o reflexo da nossa cultura”, conta Camila. “Nós fizemos questão de ocupar o espaço de direção e produção executiva do documentário O Caso do Homem Errado, para demarcar espaço, é um ato político, é que para os próximos estudos da Ancine sobre o ano de 2017 tenha registrado, ao menos, uma produção de longa-metragem dirigida por uma mulher negra e que entrou em circuito comercial”, conclui. *Texto de Vanessa Brunt (@vanessabrunt) com supervisão da editora Ana Cristina Pereira.