Dois terços dos nova-iorquinos infectados estavam em casa, mas dado não comprova falhas no distanciamento social

Vídeo compartilhado nas redes sociais apresenta somente parte de uma entrevista do governador de Nova York para afirmar que o isolamento foi em vão

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Publicado em 8 de maio de 2020 às 21:00

- Atualizado há um ano

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É verdadeira a pesquisa que afirma que, de cada três novos pacientes de covid-19 no Estado de Nova Iorque, dois estavam em casa. Mas, ao contrário do que sugerem publicações divulgadas em redes sociais aqui no Brasil, é enganoso afirmar que o distanciamento social determinado pelo estado norte-americano tenha falhado.

Os dados foram divulgados em uma entrevista coletiva do governador Andrew Cuomo, no dia 6 de maio. A pesquisa foi realizada pelas autoridades de saúde do Estado em 113 hospitais ao longo de três dias. O levantamento apontou que, entre as 600 novas internações por Covid-19, 66% dos doentes foram infectados em casa.

Um vídeo com parte da coletiva do governador Cuomo foi editado e legendado em português e publicado no Jornal da Cidade Online e em perfis e páginas de Twitter e Facebook, acompanhado de textos que afirmam que os dados da pesquisa seriam uma prova de que o lockdown decretado pelo Estado de Nova Iorque falhou. Mas a edição omite a parte em que Cuomo fala da queda no número de novas infecções, sugerindo que as políticas de distanciamento social estão funcionando. “Tudo está fechado, o governo fez tudo o que podia, a sociedade fez tudo o que podia. Agora depende de você”, afirmou.

Por que investigamos isso? Grupos contrários às políticas de distanciamento social têm compartilhado nas redes sociais conteúdos enganosos ou fora de contexto que minimizam ou questionam os efeitos do isolamento na redução da velocidade de contágio da covid-19. Tais narrativas acabam encontrando receptividade nas pessoas afetadas pelo isolamento, sobretudo pelos prejuízos econômicos causados pela pandemia. O Comprova verificou conteúdos enganosos semelhantes recentemente.

O Comprova monitora conteúdos duvidosos sobre o novo coronavírus e sobre a covid-19 compartilhados nas redes sociais e aplicativos de mensagens que tenham grande alcance nasd redes sociais. O vídeo investigado pelo Comprova alcançou 54 mil interações em dois dias somente em uma das páginas que o compartilhou.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro com o propósito de mudar o seu significado; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Como verificamos? A equipe do Comprova foi em busca da fala original de Andrew Cuomo, para conferir se as legendas em português estavam corretas e se a edição deixou alguma informação de fora. Também buscamos os dados da pesquisa. Por fim, entramos em contato com a assessoria de imprensa do governo do Estado de Nova Iorque para saber qual é a conclusão das autoridades de saúde sobre os dados divulgados.Verificação Os Estados Unidos são o país mais atingido pela pandemia do novo coronavírus atualmente. Levantamento da Universidade Johns Hopkins mostra que 1.268.520 pessoas contraíram a covid-19 nos EUA e 76.101 haviam morrido até o dia 8 de maio. Só o Estado de Nova Iorque tem 327.000 casos e 20.828 mortes.

No dia 6 de maio, o governador Andrew Cuomo deu uma entrevista coletiva para falar sobre os dados coletados pelo Departamento Estadual de Saúde. Foram mais de 1.300 pacientes internados em 113 hospitais de todo o Estado ao longo de três dias. O levantamento desenhou o perfil dos pacientes infectados nesse período: pessoas com mais de 51 anos (73%), negras (25%) ou latinas (20%) e que estavam isoladas em casa. “Essa é a surpresa: a grande maioria das pessoas estava em casa. Houve muita especulação sobre isso”, disse Cuomo, “Essas pessoas estavam, literalmente, em casa. Estavam trabalhando? Não. Estavam aposentados ou desempregados”.

A entrevista de Cuomo foi editada e legendada pelo canal de YouTube brasileiro Legendando. O conteúdo da entrevista coletiva não foi adulterado, mas trechos importantes ficaram de fora, como a ressalva de que a amostragem da pesquisa foi relativamente pequena. Ou o trecho em que o governador afirma que o número de casos começou a cair no Estado depois das medidas de isolamento social, colocadas em vigor no dia 22 de março, e sugere que a população está relaxando com os cuidados: “Você está usando a máscara? Está lavando as mãos? Tem pessoas mais jovens visitando você?”, questionou Cuomo. “É uma questão de comportamento”.

Na tela em que os dados são divulgados aparece o slogan do governo no combate à pandemia, que reforça a importância do isolamento: “Fique em casa. Pare a contaminação. Salve vidas”. Essa frase também aparece na versão legendada e editada divulgada nas redes sociais brasileiras. Mas em nenhum momento ela é traduzida. Procuramos o Departamento de Saúde do Estado de Nova Iorque para saber qual é a leitura que as autoridades sanitárias fazem dos dados. Por e-mail, a assessoria de imprensa declarou que os pacientes que pegaram o novo coronavírus em casa “claramente tiveram contato com pessoas infectadas”.

A assessoria de imprensa do gabinete do governador respondeu que os dados divulgados não significam que a política de isolamento falhou. E destaca a entrevista de Andrew Cuomo para a rede americana CBS, no dia 7 de maio. “A taxa de infecção só está aumentando entre as pessoas que estão em casa, mostrando que o isolamento está funcionando. Estamos em um nível que depende apenas de comportamento pessoal. São pessoas que estão em casa, não estão trabalhando e nem usando o transporte público. É a única população em que os índices estão crescendo, e essa é uma boa notícia”, disse ao apresentador Stephen Colbert.

Contexto Críticas às políticas de isolamento adotadas para o combate à covid-19 têm sido um discurso comum entre influenciadores de direita. Ecoando declarações do presidente Jair Bolsonaro, muitas pedem a retomada de atividades econômicas. Essa visão contraria orientações da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde, que recomendam políticas de distanciamento social para evitar a disseminação do novo coronavírus.

Num primeiro momento, tanto o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, quando o governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, também resistiram às restrições de circulação. Mas com o aumento no número de casos de covid-19, ambos precisaram voltar atrás. Um decreto entrou em vigor no Estado de Nova Iorque no dia 22 de março, determinando o fechamento de escolas e de toda a atividade não essencial, a proibição de reuniões, o distanciamento de um metro e meio entre pessoas em ambientes públicos e a medidas de higiene, como o uso de álcool gel. Quem tem mais de 70 anos ou doenças crônicas foi orientado a ficar em casa e evitar contato com pessoas de fora do círculo familiar.

No dia 7 de maio, Cuomo criticou quem coloca a saúde pública contra a economia, alegando que não existe essa oposição. O governador acredita que a redução no número de casos aponta que a política de isolamento social adotada pelo Estado está funcionando. “Você tira Nova Iorque (da estatística) e os números (de casos) do resto do país estão aumentando. Nós estamos reduzindo. Então o que estamos fazendo está funcionando. E quando está funcionando, mantenha em curso”, sugeriu.

No dia seguinte, Cuomo destacou o grande número de casos entre comunidades negras e latinas, que tendem a ser mais pobres. E afirmou que só vai reabrir escolas e o comércio quando houver garantia de que o número de casos não vai aumentar. “Se abrirmos de maneira irresponsável, vamos ver esse número de novas infecções aumentar”, disse. “Nós reduzimos a curva (de novos casos), mais ninguém. E nós vamos determinar como vai ser o ritmo de novas infecções daqui para frente”.

Alcance O vídeo editado ganhou grande repercussão entre os dias 6 e 8 de maio, geralmente acompanhado de textos que afirmavam que a quarentena falhou em Nova Iorque. Ele foi publicado na página de Facebook do Jornal da Cidade Online e somou mais de 54 mil interações até o dia 8. Outros usuários da rede também postaram o vídeo, com menos viralização.

O Twitter também foi usado para disseminar o conteúdo. O usuário Rafael Glau teve 3,5 mil curtidas e mais de 32 mil visualizações em sua publicação na rede social. Uma arte com a arroba dele foi colocada sobre a imagem de Andrew Cuomo, junto com as legendas em português. Outra publicação que teve grande alcance no Twitter foi de Arthur Weintraub, assessor especial do presidente da República e irmão do ministro da Educação Abraham Weintraub. Foram 8,3 mil curtidas e 44,5 visualizações até o dia 8 de maio. No post, ele alega que “o isolamento, na prática e estatisticamente, não funcionou!”, diferentemente do que afirma o governador de Nova Iorque.

*Esta checagem foi postada originalmente pelo Projeto Comprova, uma coalizão formada por 24 veículos de mídia, incluindo o CORREIO, a fim de identificar e enfraquecer as sofisticadas técnicas de manipulação e disseminação de conteúdo enganoso que surgem em sites, aplicativos de mensagens e redes sociais. Esta investigação foi conduzida por jornalistas do SBT, e validada, através do processo de crosscheck, por três veículos: A Gazeta, Poder 360 e Estadão.