Dona Rosa, a senhora forte que guardava memórias da cidade

Ao longo dos anos, dona Rosa, que morava sozinha, guardava muito da memória e do cotidiano da cidade, através das fotos antigas, de quando era jovem, e das pinturas de Salvador

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  • Da Redação

Publicado em 22 de abril de 2019 às 21:36

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Antonello Veneri

Domingo foi dia de Páscoa e Dona Rosa se foi. Em apenas quatro meses a Bahia perdeu três grandes mulheres que representam a alma da cidade de Salvador, Mãe Stella de Oxossi, que tive a honra de acompanhar como fotógrafo e amigo nos últimos anos, Makota Valdina e dona Rosa. Dona Rosa, 103 anos, morava na comunidade antiga da Gamboa de Baixo numa casa vizinha ao antigo forte da Marinha (século XVII). Eu a conheci em outubro de 2013, quando fui a Gamboa fotografar o Centro Cultural. Depois da sessão de fotografia, desci até o mar e cruzei com essa senhora que passeava toda vestida de branco em frente à sua casa de pedras. Foi uma epifania, uma aparição de algo poderoso. 

A primeira conversa que tivemos, naquele mesmo dia, foi toda sobre o mar e quando perguntei se podia tirar um retrato dela, instintivamente se posicionou entre as altas flores em frente à sua casa, no mesmo local que eu tinha pensado em fotografá-la. Este foi mais um sinal, grande ou pequeno que fosse, que ela era um ser encantado. E a partir deste dia, nos encontramos muitas outras vezes na sua casa que “olhava para o mar”, e nessas ocasiões eu levava as fotos que tirava dela e ela sempre me mostrava com muito carinho onde as guardava.

Ao longo dos anos, dona Rosa, que morava sozinha, guardava muito da memória e do cotidiano da cidade, através das fotos antigas, de quando era jovem, e das pinturas de Salvador penduradas nas paredes coloridas de azul. Na porta da sua casa tinha uma cruz feita por duas folhas e uma imagem de Irmã Dulce. Enquanto ao redor tinha flores, muitas flores que ela cuidava amorosamente como se fossem filhos. Ela tinha filhos e um deles chegava em casa todo dia para saber se ela precisava de algo.

À medida que fomos nos conhecendo, percebi que ela sempre se vestia de branco e terminava as frases dizendo: "Graças a Deus e aos Orixás!". Era leve e profunda ao mesmo tempo. Essa senhora de alma tão grande carregava naquele corpo sutil e que quase voava em cima das tábuas de madeira do piso de casa, uma força antiga e dois olhos vivos de criança. Ela também, como Mãe Stella, tinha uma energia contagiante, um senso de humor e uma sabedoria que vinha de longe. Eu sempre queria saber mais, eram muitas perguntas e ela respondia com leveza e precisão. Quando queria guardar uns mistérios, ria com gosto. Me recordo, que um dia em um dos nossos encontros a gente comentou sobre a situação do Brasil e dona Rosa começou a cantar a música de Cazuza, “Que País é Esse?”. Cantou inteira. Sempre no fim das nossas prosas olhávamos em silêncio para o mar. Este mar que guarda a grande dor, porque foi através dele que chegaram os antepassados de dona Rosa. Que a terra lhe seja leve Dona Rosa, querida. Salubá! 

Veja mais fotos (crédito: Antonello Veneri)

* Antonello Veneri - é fotojornalista e publica em diversos jornais e revistas do Brasil e do exterior, como National Geographic.

* Colaborou no artigo a jornalista Mira Silva